Tendo percorrido muitos países, quero voltar a falar um pouco sobre a India.
1. Antes de ir, suspeitava que a India tinha sérios problemas de superpopulação, infraestrutura etc. Mas nada me preparou para o que vi. Em todo lugar, em cada rua, em qualquer direção que olhasse, milhares de mendigos, maltrapilhos, correndo de um lado para o outro, ou simplesmente parados, provendo o nada. Casas, lojas, escritórios e oficinas formam uma continuidade apavorante de escombros, carcomidos pela indiferença. Não há um centro da cidade e uma periferia: é tudo cinza e corroído, desgastado, de algum modo corrompido. Da mesma maneira os bancos, repartições públicas, escolas. Nada se salva na India real, exceto, talvez, as ruínas de civilizações pretéritas, com templos e monumentos que tentam desmentir a realidade com uma suntuosidade ilícita. Nada é moderno, nem clássico, nem ousado nem grandioso; nem mesmo kitsch: tudo é lixo, escombro e degredo, numa escalada insuportável, que cassa a alegria.
2. O homem.
Nada é mais catastrófico, na India, que seu elemento humano. Não estamos falando de pobreza, apenas. Trata-se de um oceano de pessoas uniformemente baixas, e magras. Uma magreza de fome e ausência de proteínas. Pedem esmolas, cobram gorjetas, vendem porcarias, negam o contrato que acabaram de firmar: nenhuma indignidade lhes é estranha. Andam dependuradas em ônibus, ou dentro de carros, riquixás, de bicicleta ou à pé: transformam cada rua num pesadelo, que suplanta e destrói a India das paisagens e monumentos. No fog de Déli, ou qualquer outra cidade, milhões correm fantasmagoricamente atrás de alguma esmola, uma propina. Descrevem um lúgubre espetáculo de fome e miséria, sem apelo. Aos poucos, vê-se que as pessoas formam uma continuidade com as ruínas e escombros; unem-se num lastimável rio de nojo e desespero.
"Esta miséria", pensei, "é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no seio do subcontinente indiano, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz".
A paráfrase remete a Borges. Peço perdão por mais esta apropriação indébita.
Gerson Noronha Mota
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