quinta-feira, 5 de abril de 2007

O sexo e a origem da morte

O sexo e a origem da morte (como a ciência explica o envelhecimento e o fim da vida). William R. Clark, catedrático do Departamento de Biologia Molecular, Celular e do Desenvolvimento da Universidade da Califórnia, apresenta-nos à morte no nível das células. Ele liga sexo e morte, uma associação de evidente mau gosto. A prova do raciocínio não o exime do aborrecimento. O sexo é uma forma perdulária de reprodução, diz o autor. Pode até ser, mas os sete bilhões de pessoas no mundo – para ficar só no exemplo humano – provam que também é muito divertida. Ele diz que a morte chegou cerca de um bilhão de anos após o surgimento da vida, quando todos eram (e sabiam ser) imortais, como as bactérias e os vírus (e também algumas células cancerosas). Foi assim: Famintas por hidrogênio, as cianobactérias fotossintéticas aquáticas (que deram origem às plantas) fabricaram – sem querer – um gás mortalmente corrosivo, capaz de destruir quase todas as moléculas orgânicas em que se baseia a vida: o oxigênio. Após essa “cagada” de escala planetária, ocorrida há austeros 2 bilhões de anos, as bactérias começaram a desenvolver especializações para se protegerem desse gás. Sob pressão do meio, as bactérias (reino das formas mais simples de vida: o Monera) resolveram mudar, o que gerou novos reinos, como os proctotistas e os fungi, que incluem seres tão desprezíveis quanto os mofos e as amebas, além de consumados patifes, como o Plasmodium (causador da malária). O que foi essa mudança? A invenção do núcleo celular, com uma capa protéica protetora. Em seu caminho evolutivo esses organismos duplicaram seu DNA numa maçaroca de “corpos coloridos”, protegida por proteínas especializadas, chamadas histonas. Esses cromossomos passaram a ser lineares, em vez de circulares, como nas bactérias, e as pontas passaram a ser revestidas por estruturas especiais de DNA chamadas telômeros, para evitar que as extremidades grudem em si mesmas ou em outros cromossomos (xeretando um pouco sobre o que os cientistas já sabem, se você nasceu com telômeros longos, vai viver muito; se eles foram ultralongos, bem, basicamente, você vai matar de raiva seus inimigos. Se nasceu com telômeros muito curtos, vai importar bem pouco se você só come brócolis, alface e tomate, não fuma, não bebe e faz 3 horas de exercícios pela manhã e mais 3 à tarde - tudo bem, estou exagerando um pouco, mas só um pouquinho). Duplicado e encapsulado num núcleo – em vez de ficar balangando pra lá e pra cá no meio celular – o material genético proporcionou vôos mais ousados à evolução, o que levou ao aumento da célula (um proctotista como o paramécio, por exemplo, tem tranquilamente um milhão de vezes o tamanho médio de uma bactéria), e ao início de estruturas especializadas, como citoesqueletos – que propiciaram à célula movimento – e microtúbulos, para engolfar materiais extracelulares (expediente às vezes chamado de alimentação). Peço permissão para citar longamente o autor, com uma ou outra licença poética: Parece que algumas bactérias começaram a achar que o interior de proctotistas maiores e mais avançados era um lugar bacana para viver e criar uma família. Elas se tornaram parasitas. Como a maioria dos parasitas bem-sucedidos, estas bactérias ganharam confiança. Por exemplo, algumas bactérias aparentemente desenvolveram defesas contra o oxigênio; umas poucas chegaram a desenvolver meios não só de neutralizar o oxigênio, mas de usá-lo para produzir energia. Isto deve ter impressionado certos proctotistas, que aparentemente assimilaram por endocitose algumas destas bactérias que respiravam oxigênio. Em vez de digeri-las para obter alimento, eles as converteram em partes permanentes da célula protista. Não era o que as bactérias tinham em mente, mas, no fim, todas as células eucarióticas adquiriram parasitas intracelulares semelhantes. Essas organelas, produtoras de energia através de um processo químico envolvendoa moléculas tri e difosfato (há uma “sobra” de energia, utilizada para tocar o dia-a-dia), têm seu próprio DNA, de filamento único e em geral circular, transmitido exclusivamente por linhagem materna. Esse DNA não está associado a histonas e contém genes de estrutura notavelmente procariótica. Creio que as provas são conclusivas quanto à origem bacteriana dessas usinas, que não ignoram o nome mitocôndria. Luca Cavalli-Sforza, geneticista italiano, descreve assim toda essa confusão: Podemos encontrar milhares ou dezenas de milhares de mitocôndrias em cada célula; no mínimo uma vai estar sempre presente. Tem o formato de uma pequena bactéria e provavelmente é o que ela é: uma bactéria que há mais de um bilhão de anos adaptou-se a viver em simbiose com a célula e tornou-se um componente importantíssimo, assumindo exatamente a função de central energética. Um suprimento assim formidável de energia abriu caminho para o crescimento da célula, apenas obstado por uma propriedade geométrica: o volume de uma célula aumenta em proporção ao cubo de seu raio, enquanto a área da membrana de superfície – local por onde os nutrientes entram e os dejetos são expelidos – aumenta somente em proporção ao quadrado do raio. Logo, o crescimento torna as células muito mais volumosas (e pesadas) que grandes. Um cubo de 1 cm de lado tem uma superfície total de 6 cm² e volume de 1 cm³. Um cubo com 2 cm² de lado terá 24 cm² de superfície total e volume de 8 cm³. A razão superfície/volume do primeiro cubo é de 6:1, enquanto a do segundo é de 3:1. O leitor entendeu, não é mesmo? Ah, deixa pra lá. O importante é aceitar que, se você é uma célula, é melhor se associar a outras para enfrentar as adversidades do meio, em vez de tentar ficar do tamanho do mundo. Após muitos arranjos, incluindo vários núcleos, ou várias cópias dos cromossomos (configuração poliplóide), as células resolveram se associar em organismos pluricelulares. Foi aí, em algum lugar pelo caminho dos moneras aos proctotistas, há cerca de um bilhão de anos, que a morte que conhecemos – a morte como uma conseqüência inescapável da vida – apareceu pela primeira vez. Era a estréia da morte programada. Disse, algures, que os indivíduos unicelulares são imortais. Serão mesmo? Os primeiros moneras unicelulares reproduziam-se assexuadamente em um processo simples chamado fissão. Nesta forma de reprodução, uma determinada célula replica seu DNA de forma autônoma e depois se divide em dois clones perfeitamente iguais, cada clone descendente recebendo uma cópia do DNA. Estas células amadurecem e cada uma delas produz dois clones idênticos e saudáveis. Assim, o organismo – o unicelular – nunca morre verdadeiramente. Afinal, onde está o corpo? Pode haver morte na ausência de um cadáver? Estas células são na verdade imortais. Em conseqüência, os organismos que se reproduzem por fissão simples, como acima, não conhecem a senescência, o envelhecimento gradual e programado das células e dos organismos que elas compõem, independentemente dos acontecimentos no ambiente. A morte do organismo por senescência – a morte programada – fez sua aparição na evolução mais ou menos na época em que surgiu a reprodução sexuada. Tanto o sexo como a morte programada começaram quando a grande maioria dos organismos ainda era unicelular. (...) do ponto de vista biológico, “sexo” e “reprodução” são dois fenômenos inteiramente não-relacionados. O sexo refere-se somente à troca ou recombinação de toda ou parte da informação genética – o DNA – entre dois membros da mesma espécie. Reprodução é simplesmente isso – a reprodução de cópias adicionais de uma dada célula. “Reprodução sexuada”, portanto, significa troca de informação genética em combinação com a reprodução celular. Na forma mais simples de vida, sexo é assim: dois indivíduos unicelulares se conjugam, permutando parte do acervo genético. O processo de fissão garante que cada uma delas fique com cópias de cromossomos ligeiramente embaralhados e recombinados, o que significa dizer que aumentou a variação genética, uma maneira de as espécies conseguirem se adaptar a um ambiente em transformação, permitindo ainda o reparo ou a eliminação de erros genéticos. O sexo rapidamente tornou-se a forma dominante de reprodução entre todas as formas de vida subseqüentes. Por quê? Para as bactérias que se reproduzem somente por fissão, a imortalidade é garantida automaticamente; a imortalidade para todos os outros depende de fazer sexo. II. Sexo e morte. Existem sutilezas envolvendo os paramécios e outros proctotistas ciliados, que terminam por revelar o nó górdio da questão. Neles, surge, pela primeira vez, a segregação de DNA a ser usado para fins reprodutivos (conjugação) do DNA usado para orientar a operação diária da célula. Assim, determinadas cópias do DNA é separado e utilizado exclusivamente para a reprodução. A outra parte (composta de células somáticas) é utilizada no metabolismo do corpo, sofre inúmeras divisões (por fissão sem recombinação genética) e, no afã de manter o organismo em funcionamento, acumula muitos erros de replicação. Essas mutações não são compensadas nem corrigidas por sexo meiótico; as células somáticas não trocam nem recombinam DNA com outras. Sua função é garantir a sobrevivência e transmissão do DNA guardado pelas células germinativas, segregadas e inertes, até o momento da reprodução sexuada. Já podemos ver que a morte surge da separação entre DNA somático e germinativo. Só as células germinativas conservam o potencial da “imortalidade”. Elas podem deixar o corpo, combinar-se com outras células germinativas e produzir uma progênie. Quando isso acontece, o relógio da senescência da célula germinativa é zerado. O DNA da célula somática não recombinado torna-se não só redundante, como também irrelevante. Esse refugo genético, leitor, somos eu e você. Resumindo: O impulso para um tamanho cada vez maior foi obstado por uma lei da física (a célula fica pesada e volumosa; a área relativa menor impede trocas eficientes com o meio: alimentação e secreção ficam prejudicadas). Os organismos, pressionados, acabaram descobrindo a pluricelularidade, associação entre organismos inicialmente independentes, com benefícios mútuos. Esse mesmo impulso levou à criação de DNA extragerminativo (somático). O advento do sexo na reprodução fez o que era necessário para destruir o DNA somático no final de cada geração. Isto porque o reparo de DNA somático (não-reprodutivo) é espinhoso, caro e, no final das contas, não vale e pena. O DNA somático teria de ser alterado, de modo a refletir a composição do DNA reprodutivo novo e produzido sexuadamente. Isto já seria difícil no DNA macronuclear de um ciliado unicelular; em animais pluricelulares, está fora de cogitação. É mais fácil simplesmente destruir o velho DNA somático e recomeçar. Se o DNA está em células separadas, as células também morrem. Infelizmente, estas células somos nós. A essa altura, creio poder apresentar esta tese do autor, um susto: a morte não é um co-requisito automático da vida. Determinadas células tumorais, por exemplo, comportam-se exatamente como organismos unicelulares primitivos: proliferam assexuadamente, por fissão simples, e nunca se “cansam”. Produzem cópias de si mesmas indefinidamente, bastando alimento e oxigênio ilimitados (desde que evitada a superpopulação). O “relógio” delas está perpetuamente zerado; elas não envelhecem nem morrem. Como as células germinativas, elas são potencialmente imortais. O mais famoso conjunto de células cancerosas do mundo, chamado HeLa, já produziu, num cálculo aproximado, cópias num total de 2 elevado a uma potência de 15.000 zeros! Como é que se zera o relógio? Através da reprodução com embaralhamento genético. Uma célula somática poderia zerar seu reloginho, desde que tivesse as estruturas genéticas que reparam o DNA, corrigindo os erros acumulados. Assim, poderia gerar cópias novinhas de si mesmo, sem erros, e se “tornar perpétua”. Isto é possível para células indiferenciadas, como as células iniciais dos embriões, mas não para aquelas que formam organismos desenvolvidos, como nós. Nestes, as células expressam segmentos diferentes do acervo genético. Os demais loci ficam inacessíveis, para sempre (diz-se, da parte acessível, que essa parte fica aberta para se expressar). Estou simplificando demais a questão, por modéstia ou falta de conhecimentos (tenho certeza que alguém vai aparecer com um monte de exemplos de relógios zerados, das maneiras mais heterodoxas), mas é mais ou menos isso, sim senhor. Final. Imortalidade de quem? A “imortalidade” de uma bactéria, ou de uma célula cancerosa, incapazes de saber o que seja morte, não faz o menor sentido. A nossa dependeria de um mecanismo perfeito de reparo dos erros acumulados na reprodução das células somáticas, necessária à manutenção da vida (a reconstrução diária dos órgãos e tecidos). Imortal (mas com modificação) é o código genético, apenas, em nós como nos vírus e bactérias. Já andaríamos bem se garantíssemos vida digna, com duração razoável, a toda a humanidade, sem extermínio das demais formas de vida ou exaustão dos recursos ambientais. O expediente da associação de células, que garantiu sucesso diferenciado aos nossos ancestrais, e permitiu que emergisse uma consciência, cobrou seu preço. A separação entre células encarregadas de construir e operar um vetor para os genes, e as células reprodutivas, portadoras do projeto de novos vetores, levou à necessidade de destruir o material genético desgastado, cumprida sua finalidade: passar à próxima geração o acervo genético. No final, fatigados, encaminho-nos todos ao inefável descanso, legando aos filhos (portadores de uma determinada apresentação de nosso pool genético) o mundo. O autor faz uma abordagem inteligente do problema, levanta muitas questões, força-nos a pensar. Nesta tentativa de resumo, gastei meses. Naturalmente, o texto é muito mais rico que estas notas, simplórias. Terei de estudar um pouco mais o tema, absolutamente fascinante. Campo Grande, 31 de março de 2007.

4 comentários:

MARIA disse...

Caro Gerson,
Texto intrigante. Só não pra entender muita coisa. rsrsrsrs
Poderia me responder uma perguntas?
O autor tem por base a hipotese da Evolucao das espécies? No caso, o ser humano, ao surgir na escala da evolucao, já seria um ser de reprodução sexuada? Ou seja, ja teria surgido com a morte programada? Não que eu creia na Teoria da Evolução, pois sou muito cética e é preciso muita fé pra crer que tudo surgiu com algumas amebas! rsrsrsr É sempre útil entender as teorias.
Abraço
Maria

Manelim disse...

Maria, brigadão pelo comentário. Quanto às perguntas, sim o texto pressupõe a evolução dos organismos. Note que de algumas bactérias surgiram os organismos pluricelulares (logo, nós). Chamo a atenção para um fato: para entender a Teoria de Evolução são necessárias algumas ferramentas conceituais. Quem olha o mundo pelo filtro de uns 30 anos não está nem de longe habilitado a olhar fenômenos de 2 bilhões de anos. De qq forma, o cultivo de bactérias fornece uma boa pista de como funciona a evolução, sem exigir nada de sua fé...

Abraços.

Unknown disse...

Olá, Gerson. Muito interessante seu texto, porém tenho uma dúvida que me cerca a dias. Se nossas células indiferenciadas são imortais e possuem a capacidade de se diferenciar transformando-se em qualquer outro tipo celular, por que estas não se multiplicam e se diferenciam incessantemente, dando ao nosso organismo um suprimento infinito de células somáticas?
Abraço e continue escrevendo.

Manelim disse...

Ótima pergunta, João. Para mim, é uma questão clássica de trade 0ff: as células não o fazem porque requereria um enorme dispêndio energético do organismo, que é melhor aproveitado, do ponto de vista dos genes, investindo na prole. Além disso, não temos, infelizmente, células indiferenciadas após a infância para fazer os reparos (daí a busca por células tronco para a engenharia genética).