Carlos era uma boa pessoa. Escreveu uma biografia, em que não ambicionou se ater à estrita verdade. Declaro não lhe guardar rancor.
Esta não é uma biografia, mas pretende servir à memória de Carlos, agora que ele não está mais entre nós.
Infelicitava-o ataques de tédio, falta de dinheiro e enxaquecas. Rechaço as afirmações de que Carlos era limitado intelectualmente. Ele apenas não sentia o chamado da perspicácia e da consistência. Seus pensamentos eram modestos, davam voltas e quase sempre tornavam ao ponto de partida, amedrontados.
Suas relações com o vernáculo eram difíceis. Em várias ocasiões presenciei injustas hostilidades contra a gramática.
Acreditou em Fernando Collor, nas guerras petroleiras dos Bush, em duendes; lia Paulo Coelho. Até Kasparov lê, que se há de fazer?
Esteve no hotel Glória, no Rio de Janeiro, pouco antes do acidente. Despertou sincera e profunda antipatia logo ao chegar. Não só dos funcionários do hotel, mas também dos participantes do simpósio.
Espontaneamente, e sem a concorrência de um só gesto de Carlos, os funcionários do hotel entraram a odiá-lo. Desde os porteiros, até os funcionários do caixa (com quem jamais falou), passando pelas camareiras (que pouco o viam), eles intuíram que sua obrigação imediata era o ódio. Antigas desavenças foram esquecidas; inimigos de quinze, vinte anos deram-se as mãos, unidos no projeto maior de afrontar hóspede tão gostoso de odiar.
Ninguém sabe por que era tão gratificante odiar Carlos. Ele não era arrogante, não tinha sucesso na vida, cumprimentava até os mendigos que passavam do outro lado da rua, não era bonito (Deus sabe quanto Carlos não era bonito), nem rico. Mas ninguém que o conhecesse deixaria de considerar: “eu tenho de odiar esse manezim!”
Ex-funcionários, em cujas escandalosas demissões foram negligenciadas verbas indenizatórias – e que haviam jurado incinerar o hotel – de repente telefonaram oferecendo seus conhecimentos à casa para fazer sofrer o nosso Carlos.
Não se sabe como Carlos desenvolveu esse dom, de despertar iras assassinas no mais pacato interlocutor. O leitor pode pensar que Carlos não fazia o menor esforço para ser amado ou, pelo menos, aceito. O paradoxal é que não fazia outra coisa na vida.
A razão das dificuldades de Carlos, arrisco dizer, é que ele vivia além de suas posses afetivas. O aspecto pouco animador de sua vida interior talvez residisse, justamente, nos gastos anímicos exagerados, empreendidos no afã de ser aceito.
Diversas vezes tentei ajudá-lo. Carlos não era de perseverar. Mal percebia dificuldades, corria a se refugiar em livros de auto-ajuda, e nos insossos programas de tevê; acossado pelas asperezas da vida, entrava em devaneios; sonhava mundos amenos, mais simples.
– Essas fugas te consomem – tentei alertá-lo.
Em toda a vida freqüentou diversos esquecimentos. Esqueceu como foi sua infância, de escassos encantos; esqueceu a escola em que estudou, a cidade em que cresceu; os amigos, que o perderam antes de mesmo de serem esquecidos.
Esqueceu as surras que levou ou empreendeu, os tombos; esqueceu as namoradas unilaterais dessa mesma infância, e as felicidades que a visitaram, intermitentes.
Carlos era generoso, mas pouco podia fazer para mostrar-se. Era um desvalido. Sua mulher o abandonou, assim que pôde. Os filhos o abandonaram, assim que puderam. Foi feliz com outras mulheres, que não foram felizes com ele. As decepções cumularam-no, sem prejuízo do bom humor, que lhe caía bem.
Torcedor do Flamengo, mas principalmente de Zico, Júnior, Leandro e Éder, visitou a Gávea; participou de um transe coletivo no Maracanã. Naquele domingo, as hordas chegavam de todos os lados. A Zona Norte forneceu carregamentos dos mais exaltados torcedores; o Livramento, o Adeus, o Dona Marta: de toda parte eles desciam, varados da necessidade prévia de humilhar o adversário.
Do Caixa d´Água baixaram varões exemplarmente motivados; munidos de foguetes – que poderiam, sem dificuldade, trazer embaraços à VI Frota – via-se quanto eles acreditavam no time.
O Maracanã tremia em ondas, entregue aos movimentos das massas. Já nem importava o que os jogadores faziam em campo, mesmo porque, da arquibancada, pouco se distinguia além de formiguinhas uniformizadas correndo aleatoriamente atrás de algo, de qualquer forma invisível. A torcida bastava a si mesma, munida de radinhos, mantendo-se informada dos acontecimentos no remoto campo. Se os soldadinhos de chumbo se reuniam no centro do campo, alguém passava a senha, e a comemoração tinha início.
A princípio, as torcidas vacilavam sobre quem tinha feito o gol, então ambas se levantavam, eufóricas. Depois de alguma apreensão, permeadas de histéricos desmentidos pelo rádio, e na impossibilidade de se saber quem tinha marcado (se é que um gol se produzira) chegava-se a um acordo, e a torcida (do Flamengo, por exemplo) arrogava-se o direito de saborear aquele gol, tão necessário.
Foram 93 minutos desde o nada até a glória incandescente. Armam-se os foguetes, acendem-se as piras, transbordam cascatas de rubros fogos, a torcida erige deuses, transida de furiosa felicidade. Em meio a ela, Carlos, oscilando junto com a arquibancada, num encapelar uniformizado, enquanto lá embaixo os jogadores já se dirigiam a suas ferraris.
Consumada a apoteose popular, cada carlos devia se resignar a sua respectiva insignificância.
O nosso exerceu diversas soberbas. A mais lembrada é sua humildade. Custava-lhe falar de si mesmo; não consentia que outros em sua presença o fizessem. Era um notório defensor da abolição dos títulos; empreendia filantropias desinteressadas, o que só aumentava o rancor que lhe votavam os amigos.
Lia distraidamente e sem compromisso. Não favorecia negociatas, conchavos, e outros bons negócios. O que não o isentava de ser usado nesses mesmos conchavos; de ser instrumento da perfídia alheia.
Carlos exerceu soberana irrisoriedade. Não há um único episódio, um único móvel de sua vida que exorbite o irrisório, o ordinário. Quando se formou (em direito); quando operou o joelho; quando casou; quando nasceram-lhe os filhos; quando salvou crianças da fome: essas coisas, consideradas em si mesmas, alcançavam especial grandeza. No que dissessem com Carlos, encolhiam, encolhiam e se perdiam nas cavas insondáveis do irrisório.
Empreendeu esforços heroicos para conferir totalidade a seus dias; alimentou e cuidou, anonimamente, de um batalhão de órfãos, desistiu de seus sonhos, em prol dos sonhos dos filhos. Essas iniciativas implicaram na felicidade, na fortuna alheia. No que concerniam a Carlos, tornaram-se memórias de gris irrisoriedade.
Não se deve confundir irrisório com efêmero. As coisas mais importantes da vida podem ser efêmeras: o sorriso de uma mulher ou de uma criança; a festa de casamento; a palavra amiga; a mão de carta redentora; o lampejo azulado antes do raio. Que há de mais efêmero (e mais importante), que o sim de uma mulher?
Que nunca seja irrisório.
Havia algo em Carlos que eu não saberia figurar: em português é usada a palavra tristeza, sem ser inteiramente. Não consentirei o solecismo depressão (o que aborreceria a memória de Carlos), não. Todo o Carlos engenhava impoluta tristeza, para além de qualquer dor.
Comecei a falar de Carlos, cometi alguma indiscrição e vejo que ele se evade, complexo. Não acredito em pessoas complexas. Possa o leitor perdoar essa sinceridade.
Não diria que Carlos tinha personalidade complexa. Diria que era acidentado o percurso até seu suposto cerne, e que procurar essa essência seria como procurar o mais modesto rancho no mais remoto sítio num continente entregue ao abandono.
Esse traço da personalidade de Carlos, a princípio confundido com improbidade afetiva, descrevia uma variável importante em sua economia mental, persistente. Carlos era triste, sem sê-lo necessariamente.
Patrocinou inúmeras causas morais, previamente perdidas. Posicionou-se ao lado dos ianques na estafante guerra chamada Século XX, sem saber que era traído pelo complexo industrial-militar da América, que a empreendera. Guerras de cem anos ou mais não chegam a ser novidade. Novidade foi o culto entusiasmado a filantropos como Hitler e Stalin.
Se me pedissem para formular um mundo que não pudesse ser pensado, por contraditório, eu polidamente refugaria. Borges apresenta-nos esta enormidade: um mundo em que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites.
Isso implicaria que todos os eventos desse mundo, que perdura e portanto precisa sacar somas de realismo e localidade no banco do espaço-tempo, são invariavelmente falsos, exceto os ocorridos ao redor do prazo mágico.
Borges não se dá conta, ou não se importa, que não existe mundo sem eventos, e que nenhum mundo de respeito toleraria intervalos arbitrários de veracidade; espasmos existenciais fixados por capricho.
Ora um mundo em que tudo fosse mentira seria um não-mundo, o ocioso emprego dos petrechos da existência em uma vasta facécia.
Fui amigo de Carlos, não seu confessor. Não saberia dizer, por exemplo, por que ele correspondeu ao amor de algumas moças, e ignorou o de outras, igualmente lindas (fique claro que toda moça que por nós se apaixona é linda).
Desde Mônica, passando por tantas paulas, fabrícias e anas, muitas mulheres submeteram Carlos a esforços anímicos, procurando ganhar suas fortalezas ora com carinhos, ora com desdém. Carlos caiu gostoso nas muitas armadilhas que elas lhe prepararam (é de mau gosto não cair nos laços de uma mulher). Com isso, seu músculo cardíaco sofreu inúmeras fraturas; foi estraçalhado por mulheres tranquilas e seguras na disciplina exclusiva de fazer-nos sofrer. Mas isso é secundário. O importante é cair em todas essas armadilhas, insisto.
Patrícia, por exemplo, arranjou noivo, só para dilacerar o pobre Carlos, que a essa altura se apaixonara por aquele corpinho, por aquelas duas esmeraldas instantes, por aquela inteligência feminil, de claros pendores para a ira. Ele começara a depender dela para sorrir, para acreditar. Quando soube do noivado, estrelas borradas e trêmulas acusaram o golpe.
É difícil antecipar-se à ira de uma mulher. Normalmente, até pensamos que estamos agradando, quando sobrevém a tormenta. Elas chegam de mansinho, muita vez sorrindo, e despejam doses cavalares de desprezo. Apresentam-nos ao noivo; viajam com um cara (você não conhece o tal cara ou, pior, conhece); namoram um amigo; vão estudar no exterior.
Saberá, o homem, o que quer uma mulher? Saberá a mulher?
Carlos não sabia, desnecessário dizer. Ele as amava; elas sabiam que empolgavam aquele coração. Toda mulher sabe que merece ser amada. Cada qual exige amor inaugural, frescor de flor do campo orvalhada. O melhor é não se demorar para obedecê-las.
Carlos não se consentia inteiramente; não era tranquilo conviver consigo mesmo. Pegava em armas contra si. Passava longas temporadas ausente; sumia, fugia para regiões não sabidas da migração anímica; reaparecia muitas pessoas depois, desarvorado, faminto de vivências amenas, de interações gentis.
Carlos, como contar-te?
Vou dizer só mais umas coisinhas e já finalizo. Carlos estava para receber uma promoção na vida: casaria com uma moça em cuja alma a natureza fora muito feliz. Era dessas moças peritas em convivência: uma verdadeira mulher. Dessas que nos invadem as agruras, os queixumes, trazendo o hidromel do sorriso, aconchegando-nos com palavras quentes e vivificantes.
Interveio o destino, não permitindo que todo aquele encanto fosse contaminado pelas artes invejosas do cotidiano. Carlos foi colhido pela noite terminal; juntou-se a estrelas em fuga, e a essa altura talvez alimente a poeira que vai contrair-se para formar novas estrelas.
E é assim que hoje seus amigos se lembram de Carlos: como um jardim acolhedor, descansando em eterna sombra.
Winston, 9 de outubro de 2004.
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