Esta é a biografia de Winston. A rigor não chega a ser uma biografia, dada a carência de técnica e credibilidade. Se concedermos que uma reunião de assertivas provisórias sobre uma pessoa tende a biografia, então estas serão palavras biográficas. Caso contrário, a pensarmos só nos textos canonicamente biográficos, aí estaremos em dificuldades.
Muito amigo de falar mal dos outros, Winston não apreciava que dele falassem mal. Avaro, pouco afeito às boas normas da conversação, era considerado deselegante e mal-educado. De ordinário, não chegava a ser grosseiro.
Foi visto se apropriando de caramelos em um supermercado; inventou sucatas, logo dedicadas a um ferro-velho. Todos esses sucessos pertencem à infância.
Não gostava de coisas simples, embora não conseguisse entender as complexas. Era afetado, pomposo, muito inclinado à retórica e à mofa. Desafinava ao cantar, e parecia não ter compreendido algumas regras básicas de convivência.
Desenvolveu avançadas técnicas de arrotar, a poder de muito exercício; aplicado glutão, seus flatos se pretendiam humildes e sinceros.
Estudou Direito, e não quis ser advogado. Acabou no serviço público, onde não deixou obra digna de menção. Em 20 anos “dedicados à vida pública”, parece que duas ou três pessoas o chamaram de “chefe”, talvez por engano, mas essas pessoas já foram punidas.
É difícil avaliar seu legado. Salvaram-se alguns ofícios. Cada um deles discorda da norma culta em quatro ou cinco oportunidades, e apresenta dois ou três erros de datilografia, cuidadosamente espalhados pelo texto. O fato não é prova suficiente de consumada incompetência.
Concedamos um texto do nosso biografado:
“Consta minha mesa de trabalho de um balcão curvo, sobre que festejam alguns livros, alguns objetos estritamente irrisórios. Certos papéis exercem efêmera preeminência, até a rendição do despacho diário.
Um computador, como chamamos essas obtusas bolachas de silício neste início de século, usurpa o canto arredondado da fórmica bege.
Dicionários, cadernos de leis e jurisprudência disputam, apertados, a reta oblonga que se opõe à parede de vidro. Lá fora, árvores tocadas de piedade espiam por cima do muro a triste sina de homens confinados a cubos de vidro e gesso.
Sento-me à frente da parte mais fluida dessa desenganada reunião de entidades sem nenhuma afinidade entre si:
Sou o funcionário que todas as manhãs invoca a burocracia, sua feroz interdição, sua indústria impotente ante a vida.”
Essa mediocridade, essa desnecessária irrisão não edifica nem pode transformar. É emissão unilateral, e agasta.
Parece que Winston desperdiçou muitas tardes denunciando a corrupção alheia. De tão secretas, as denúncias eram dirigidas a ele mesmo, e imediatamente esquecidas. Sem entrar no mérito da discutível serventia desse orgulho, não conheço uma única página de Winston dedicada à própria corrupção.
Winston gostava de viajar. Fez-se passar por turista em alguns desertos, alguns mares, diversos balneários e várias cidades norte-americanas. Conheceu a Tierra del Fuego; não lhe era estranho o continente africano. Paris o encantou; Natal o acolheu por longos meses. Campo Grande fingia suportá-lo e São Paulo não lhe percebeu a curiosidade.
Era dono de um gosto musical eclético, posto não incluir o modismo do mês, música sertaneja e alguns gêneros de música de rua.
Não se sabe de onde tirou sua paixão por aviões militares, principalmente caças de alto desempenho, bombardeiros e helicópteros. Gostava também de tanques, foguetes e porta-aviões. Esteve em Cabo Canaveral, reverenciou os deuses saturnos.
Julgava que o lançamento de um míssil nuclear intercontinental, por submarino imerso, era a imagem-símbolo da escatológica década de 1980.
Guardou a fotografia de um F-15 Eagle “armado até os dentes” iniciando uma corrida supersônica, enquanto ao fundo alguns picos nevados sustentavam o céu do Alasca. Na época, O Eagle era o único caça capaz de superar a barreira do som na vertical, ameaçando as estrelas. O avião de espionagem Blackbird deliciava-o. Decolando, expelia sinistras línguas de fogo, enquanto lá embaixo a base estremecia sob o discurso de seus brutais motores. Apreciava esses solecismos.
Winston não cometeu a imprudência de tentar aprender a pilotar aviões, mas fez-se proclamar mergulhador de águas rasas.
Fracassou ao tentar a sorte no inglês. Suas frases eram agramaticais; as pessoas facilmente descriam de sua prosódia. Pronunciou algumas palavras em Los Angeles, e foi como se um urso polar quisesse doutrinar cacatuas, arriscando gorjeios; ou como se um pato de repente pretendesse governar baleias.
Não que soubesse português. Nessas coisas, era um licenciado, à moda de alguns poetas.
Envergonhou-se de todos os candidatos que ajudou a eleger. Muito mais vergonha sentiu daqueles que não chegou a apoiar. Mesmo os merecedores de sua aversão prontamente o desapontaram.
Irremediável funcionário público, o Winston nunca deu lucro a ninguém. Nem a si mesmo. Jubilado, deu balanço de quanto fez, e principalmente de quanto escusou-se fazer.
Participou das mais tolas negociatas. Foi traído com entusiasmo, invariavelmente, e teve de arcar sozinho com os prejuízos. Apesar de tudo, não se considerava um disponível.
É difícil falar dos sentimentos desse moço. Ele quase não os expressava. Não conheço pessoa que, tendo sentido tanto a vida, tenha se evadido tão dramaticamente de denunciar-lhe os gozos, as primícias – e os suplícios.
Se ele amou? Ah, se amou... Amou, sem dúvida. Mas é controverso se alguma vez foi correspondido, ou que, correspondido, tenha amado de volta.
Suspeitou que algumas vezes foi correspondido, mas não chegou a apurar isto que não degenerou em casamento.
Depois veio aquela história de vender a alma. Ninguém sabe o que foi aquilo. Parece que foi uma overdose de Goethe, Mann, Cervantes e Rosa.
O que não dá pra entender é como ele pôde sustentar que Dom Quixote vendeu a alma ao diabo. A missão do fidalgo era penar, como penou, o que atenta contra o objeto do contrato: facilidades secretas e antinaturais, acúmulo de honrarias, bens e vantagens, em troca do destino corrupto da alma.
Ademais, a recusa do atribulado fidalgo em ir ter às justas de Saragoça é prova de sua inocência, a meu ver.
Mas Sancho Pança talvez tenha vendido a alma, e os leitores não foram prevenidos. São conflitantes as versões. Não confio um segundo em Cervantes, ao menos no que diz respeito a Dom Quixote e Sancho. Já Alonso Fernández de Avellaneda, que relato maravilhoso nos fornece dessa dupla de malfeitores!
Winston nunca alcançou ser nomeado Sancho; é fato que algumas vezes se pretendeu Hamlet. Deplorava a escassez de recursos essenciais, como fantasmas do pai, caveiras e bruxas. Também os tios careciam de qualquer inveja ou sagacidade. Assistiu, desconsolado, reinos minguarem em toda parte.
Mas considerava-se um príncipe, incompreendido senhor de castelos inexpugnáveis. Seu único castelo ficava na XV de Novembro, número 1800, e era freqüentado por rica fauna de traidores e bisbilhoteiros. Ali dava expediente integral, convocava e dissolvia mundos imaginários, retificados das ingratidões da vida.
Eram mundos de mulheres incrivelmente acessíveis, e – o que é inimaginável – mais tolas que os homens. E todas se experimentavam em corpos de playmates vertiginosamente perfeitos.
Dali partia em expedição pelo mundo real, nem sempre com bons resultados. Lembro-me de quando, por engano ou distração, ele saiu liderando uma passeata que se perdera e passava pela XV de Novembro, a caminho da Prefeitura. A princípio os participantes seguiram esse imprevisto líder. Mas a falta de sintonia, o desconhecimento das divisas ensaiadas, o rosto e nome pouco familiares, e principalmente as crescentes divergências com o ideário resultaram no seu desmascaramento. Não tinha o talento do Cabo Anselmo. Foi expulso da horda e aconselhado a encontrar seu próprio grupo de pressão.
Outras vezes foi mais feliz, mas não temos acesso a essas aventuras.
Às vezes penso – e uma vez, ao cabo de um grande esforço, cheguei a acreditar – que o preocupava “o elevado custo da confirmação do eu, uma despesa total”, como formulou H. Bloom a respeito do poeta Whitman.
Eça de Queiroz deu-nos o personagem Pacheco, que em toda a sua vida nada fizera de relevante. Eça anotou, sem muito respeito: “Pacheco não deu ao País nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéia” e no entanto “tinha um imenso talento”.
A mesma observação é válida para João Goulart, o presidente que empreendia e sofria golpes de estado diários. Nesse particular, Winston Silva – “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais” sul-mato-grossenses – pode ser considerado continuador de ilustre tradição.
Carlos, junho de 2004.
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