domingo, 16 de abril de 2006

Happiness – A History


The Economist resenha a obra Happiness – A History, de Darrin McMahon:
Na década de 1840, o eminente e rabugento escocês Thomas Carlyle queixou-se: “Qualquer mísero fedelho sobre a face da Terra tem a cabeça cheia de idéias de que é, será, ou – segundo todas as leis humanas e divinas –, deveria ser feliz”. Carlyle, felizmente, não viveu para ver a seção de auto-ajuda de qualquer grande livraria do século XXI, com as estantes gemendo sob o peso de best-sellers como “Felicidade Infinita”, “Felicidade Absoluta”, “Felicidade Duradoura”, “Felicidade Compulsória”, “Felicidade É Seu Destino” e “Encontre a Felicidade em Tudo Que Você Faz”. 
Já tive oportunidade de elogiar esses escrevinhadores, suas excelentes performances nos iletrados dias de hoje, mas vejo com reservas a violenta felicidade que eles tentam incutir em seus numerosos leitores.

Leiloam com fervor a auto-sugestão de felicidade. Os desafortunados, ao não mentir para si próprios, caem no pranto. As pessoas se reúnem para fazer garatujas, esgares e gargalhar, ainda que compulsoriamente, igualando-se de alguma forma aos sequazes de Stálin. Sabe-se que algumas alcançam a “felicidade” com argumentos anímicos realmente modestos, o que não surpreende. Outras alcançam êxtases quando um bandido confesso escapa da punição, ou quando um inocente é esmagado pela máquina do Estado.

Para mim, alvejar-me com o mantra “estou feliz” seria o mesmo que, ao perceber um pneu furado, eu descesse do carro e começasse a mentalizar o furo se fechando e o pneu inflando, tudo causado por pensamentos positivos. Porquanto muitos consigam, reconheço, humildemente, que a dificuldade deve estar em mim.

Felicidade, palavra indecidível, desiderato de todas as utopias, sórdidas ou risonhas, não pode ser definida. Mais que uma polissemia, há um desacordo essencial em seu emprego e legitimação. Darrin, o autor, PhD por Yale, evita essa cilada. Ele lembra que seu conceito moderno foi uma invenção do Iluminismo, para quem felicidade “era menos um ideal de perfeição divina do que uma verdade auto-evidente, a ser buscada e conquistada no aqui e agora”. A aristocracia federalista que se apoderou do nascente estado norte-americano adotou a “livre busca da felicidade” como um dos “direitos analienáveis” do homem (o homem branco, vamos deixar claro. Os escravos continuariam onde estavam).

Felicidade é modo de viajar, não um lugar para onde se queira ir, diz-se em redor. O lema, empobrecedor, abstrai que nem todos toleram a vertigem da viagem. A formulação de uma divisa nem sempre dá conta de um problema, fora dos muros de um partido ou seita.

As maiores autoridades em felicidade de hoje (os próceres de seitas e os escritores de livros de auto-ajuda) não deixam por menos. Exigem felicidade instantânea de seus adeptos. Alguns, honestos, se sentem infelizes ao não alcançá-la.   

Haveremos de ser felizes agora mesmo, ou isto pode ficar para logo após a morte? Temos alguma influência sobre nossa felicidade? Podemos adulá-la, na esperança de que se prolongue, frutifique?

"Será a busca da felicidade no outro lado da morte menos irrisória que neste?", indagava Borges.

Em última instância, defendo o direito das pessoas serem tristes, se lhes apetece; se assim melhor se percebem no mundo. Sei de economias anímicas que não dispõem de orçamento para vigorosos transportes de alegria. Então, muitas se contentam com suas tristezazinhas, tão indefiníveis quanto suas contingentes e voláteis alegriazinhas.

O que resta, talvez, seja uma modesta soma de contentamentos. A utópica felicidade está sempre além, a bordo do avião que passa e cuja fugaz sombra apenas vislumbramos na areia onde plantamos os pés.

Campo Grande (MS), 16 de abril de 2006.

sábado, 15 de abril de 2006

Vaca canadense

Depois de tanto tempo, aí está uma foto minha (sou o de casaco vermelho). É uma praça no centro de Toronto, temperatura amena ( menos 5°C). Fizemos amizade.

quinta-feira, 13 de abril de 2006

De páscoa, honra e quadrilha

Glauco nos presenteia com essa gostosa charge. Notem a alegria contagiante, o genuíno entusiasmo com que o companheiro coelhinho tenta entregar o presente ao companheiro presidente. Fala a verdade: ele vai conseguir. A mim, o melhor da charge é a alegria do coelhinho. Uma delícia de performance. Clóvis Rossi perpreta a seguinte maldade, na Folha de S. Paulo de hoje: "Você já se deu conta de que o presidente da República é também o presidente de honra de uma "organização criminosa"? "Sim, essa é a única - e inescapável - conclusão política do libelo do procurador-geral, Antonio Fernando de Souza, sobre o esquema do mensalão e penduricalhos", alfineta Noblat. Ao saber que o Procurador-Geral surpreendeu 40 cavalheiros em atividades impudicas, um senador lembrou de Ali Babá. Fernando Rodrigues, lacônico como sempre, prometeu que uma revista, neste final de semana, informará seu atual endereço. O coelhinho vai conseguir, ora se vai. Pouco importam essas ninharias. Estamos na Páscoa. Preparo um texto sobre a felicidade. Reconheço que faltam-me subsídios, mas vou tentar assim mesmo. Os dois leitores, que me honram com visitas (anuais), hão de perdoar a sem-graceira política.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Precisa-se de caseiro, que seja discreto

Fernando Rodrigues, em sua coluna na poderosa Folha de S. Paulo de 19/02/2005, contou-nos sobre deputados pré-pagos: “Entram numa sigla para servir a algum propósito – como engordar uma ala do partido que deseja obter algum cargo – e saem em seguida. Perdem a validade. Só funcionam com uma nova recarga.” Após informar que esses deputados custavam algo como 30 mil reais, ele finalizou, de forma didática: “muita gente que antes não podia agora já sonha tranqüilamente em ter o seu deputado próprio.” Existem muitos tipos de deputados. Nem todos se vendem, é claro. O tipo carnavalesco, basta entrar em plenário e perninha e bracinho logo se armam em dancinha. Muito famoso, é o que mais me agrada. Temos também o tipo sortudo: o só fato de passar em frente a uma casa lotérica já lhe garante o prêmio. Existem, enfim, muitos tipos, em simetria com seus eleitores, ninguém ignora, e alguns dos mais astutos deputados se tornam caseiros, ou motoristas, e vice-versa. Um amigo me disse, a respeito: "não estou bem certo sobre a utilidade de um deputado, mas também gostaria de ter um só pra mim". Não concorde com ele não, leitor.

domingo, 9 de abril de 2006

São Paulo

Volto de São Paulo. Três novos livros. Dois referem economia. Ando lendo sobre Stálin, o rei do rá-rá-rá. Era um maestro. Seus músicos tocavam árias e operetas em que milhares morriam. Não sem antes a devida tortura. Quase todos os colegas de liderança do partido e do Estado morreram assim. Marechais, hierarcas, artistas ou anônimos eram sacados de suas famílias e, pouco depois, ressurgiam confessando todos os "crimes" contra o Estado, a Revolução, Stálin, etc. A ninguém ocorreu que Stálin era de carne e osso, e podia ser alcançado. É pena que nossos semelhantes sejam tão trágicos, e colaboram alegremente com a própria aniqüilação. Após a leitura, um resumo, que não há de ser alegre.

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Avenida Paulista

Na Paulista, pressa à pé (os carros, vitimados pela luz vermelha e pelo engarrafamento, não podem se dar a esse luxo). São Paulo não tem jeito. Corre-corre sob chuva fina. Os negócios evoluem. Vim a negócios, mas cabe diversão. Vou ao zoológico, e a alguns restaurantes. Talvez consiga ver algumas peças de Samuel Beckett, em cartaz. Quem sabe veja "Esperando Godot", se eu conseguir ficar mais um pouco... Avenida Paulista, 6 de abril de 2006.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Os relógios

Consultando minhas gavetas, constatei que quatro dos meus relógios de pulso são citizen. Não procurei essa marca, nem qualquer outra, e me resignei a essa desnecessária repetição. Um relógio foi comprado na 13 de Maio, em uma relojoaria, por ser do leve titânio, e recolher a energia luminosa para seu uso particular. Sua proposta é de economia; foi aceita. Noutra ocasião, uma vendedora fez-me ver que eu precisava de um relógio com medidor de temperatura. Estava de viagem para Ushuaia, último endereço antes do Pólo Sul. Na agenda também constava um deserto, ora gélido, ora tórrido. Temendo essa oscilação, comprei o relógio, que teimosamente aponta para um promédio entre minha temperatura corporal e a ambiente. Foi comprado na 14 de Julho. O terceiro comprei num mall center em New Jersey, próximo ao aeroporto de Newark. Era uma tarde cinza e gélida, adequada à devoção consumista. O mall era daqueles labirintos infindos, repletos de mercadorias mascadas pela indústria asiática. Pareceu-me que eu precisava de mais aquele relógio, talvez por suas placas pretas em cerâmica, talvez por seu preço. Comprei-o e ele povoa com destemor minhas gavetas de guardados. Não me lembro por que (diabos!) comprei o quarto citizen, se ele não passa de um relógio pesado, com calendário manual (detesto calendários em que todos os meses têm iguais 31 dias). Talvez a explicação para tantos citizen esteja no meu primeiro citizen, pintado de amarelo, adquirido por minha mãe numa loja de departamentos num Shopping Center de Salvador, nos começos de fevereiro de 1986. Calendário digital, mostradores analógico e digital, alarma, despertador e cronômetro, o reloginho me acompanhou por mais de quinze anos, até sumir. Era confiável, leve, discreto, elegante e, mais ainda, leal: tudo que se aprecia, em relógios ou pessoas. Nunca me roubou horas; não me sonegou dia algum, nem tentou a emenda do século findo. Enfrentou com galhardia a assombrosa aproximação do novo milênio, de maus presságios, para as pessoas inclinadas aos maus presságios. Mais do que o excesso de citizen, horrorizou-me a constatação de que diferentes relógios de mesma marca ajustaram entre si a astúcia, e cada qual testemunha horário diverso dos outros três, sem régua possível de correspondência que me indique horário neutro, isento da superstição dessas agulhas rebeladas. Assim, se um me indica o nascer do sol, outro diz que o café da manhã é passado, que até cabe um almoço. Um terceiro sugere um mundo autônomo, feito de tarde ida, e café contra o sono. O quarto, se alcançado, mira exemplos de horários nunca pesquisados, pouco estáveis, de difícil apreensão. Horários de Marte; horas talvez lunares. A fiscalização desses fragmentos horários é tarefa aborrecida. O tempo, em distintas partidas, solapa a noção de causa e efeito, destruindo qualquer possibilidade de encontro, de convergência. Essa assincronia me trouxe agravos, e pensei dar cabo dessa leviandade perdendo os relógios sob o peso de uma montanha. O tempo escapando entre os dedos não é sensação confortante. A desnecessária repetição de atos que outros presidem com alegria; a petição de quereres embargada no desautorizado discurso das setas horárias: tudo transcorre incerto, sem governo ou probidade. O pôr-do-sol abjurado por mecanismos viciados, cingidos internamente por códigos de falecimento. O que esses relógios querem de mim? Terão percebido a proximidade do horizonte de eventos, a capturar luz e matéria? Estariam tentando retardar, com essa concertada anarquia, a marcha do espaço-tempo para a aniquilação? Não sinto o tempo nem mais nem menos que qualquer outro condômino do planeta. Não uso desmedidas porções de tempo, não o desperdiço, não o desprezo nem o venero. O tempo é apenas insumo frágil, perecível, para a indústria nossa do dia. Não tenho, como Drummond, vastas reservas de tempo, futuros, pós-futuros, esperando que meu desejo e miopia as tornem manhãs. Nem consigo postar-me fora do tempo, no conduto de algum túnel einsteniano. O tempo é pauta mínima para a consumação da vida. Considero-me realista, sei que a segunda lei da termodinâmica jamais será vulnerada. Físico algum sequer pensaria nisso. Então a desordem, o caos, seguirão rindo de nossos esforços de ordenar o mundo, mesmo que apenas mentalmente. No vasto campo em que o mundo se experimenta e se permite um soluço, grassa o escandaloso desequilíbrio termodinâmico chamado vida. Se os espelhos de Borges súbito se punham a divergir da realidade espelhada, muito pior a conduta desses marcadores do tempo. Sem qualquer instrumento de calibração que me permita pô-los de acordo, resta aquiescer ao desmantelo na medição de meus dias. Se tento triangular as medidas, calculando a posição da dimensão temporal pela relação entre os relógios, já me vejo impedido pelo malicioso empenamento, pela expansão, contração e tremor do tecido temporal. Vigiar o tempo é empresa do orgulho, mais difícil e improvável que a amizade do vento. Os infaustos relógios de Dalí, sua notável tendência para o derretimento, não atentam contra a realidade como meus quatro relógios citizen. Para meu grande azar, sem eles não saberia as estrelas, não teria acesso ao sol, vegetaria numa bruma transorária em que a ambigüidade do passado se confundiria com a impraticabilidade do presente e do futuro. A vida se tornaria fatigante exercício da postulação de tempos, cada vez mais arbitrários. A rigor, meus relógios não me sonegam o tempo: apenas deslocam-se em interna fantasia, fazendo do mundo um suflê de incerteza e caprichos. É perigoso não observar o tempo; devemos ainda tolerar sua platitude. Poderíamos investir contra a primazia do tempo, mas incorrendo em sua ira, com graves conseqüências para a estipulação de causa e efeito; antes e depois se tornariam atributos irrecuperáveis, empobrecendo qualquer possibilidade de ação. Reúno meus quatro relógios sobre a mesa. Meço o tempo. Não há acordo possível, e tempos distintos arruínam a função de onda com que os físicos descrevem o comportamento da matéria. Incerto, inauguro tempo interno, invariável, e absolvo-me de um mundo amotinado, em benefício de uma proposta de sonho. Em 2003. P.S.: O relógio de titânio, dos quatro o mais forte, foi o primeiro a ruir, superado por forças cortantes da confusa noite de Brasília. Previno-o quanto àquela cidade, leitor, sua tendência para o insólito.

segunda-feira, 27 de março de 2006

O observador

Carlos Drummond de Andrade, em O observador no escritório, denuncia o ocioso estar-no-mundo. Ele condena o tempo, verdugo esquivo e sem rosto, a seu ver. Seus golpes, lentos ou acelerados, não apenas modificam, senão que produzem a nós, suas vítimas: 1951. Janeiro, 22 - Tarde de chuva fina, no centro junto à livraria, observo minuciosamente as ruínas do tempo, que me sorriem. Para não sofrer com o espetáculo, preferia fechar os olhos. Eles, porém, inspecionam por conta própria, máquina fotográfica a funcionar independentemente de mim. Chove no passado, chove na memória. O tempo é o mais cruel dos escultores, e trabalha no barro. Fernando Pessoa, por um de seus heterônimos, aprofunda o sentimento e surpreende - atrás de nossas fúteis máscaras, carnavalescas ou monásticas - o mal-estar genuíno, último, elemental: Lembro-me ainda, com uma precisão em que intercala o perfume vago do ar da primavera, da tarde em que, meditando todas estas coisas, decidi abdicar do amor como um problema insolúvel. Era em maio – num maio de verão suave, florido pelas pequenas extensões da quinta em várias cores esbatidas pela queda lenta da tarde começada. Eu passeava remorsos de mim entre os meus poucos arvoredos. Havia jantado cedo, e seguia, sozinho como um símbolo, sob as sombras inúteis e o sussurro lento das ramagens vagas. Tomou-me de repente um desejo de abdicação intensa, de claustro firme e último, uma repugnância de ter tido tantos desejos, tantas esperanças, com tanta facilidade externa de os realizar, e tanta impossibilidade íntima de o poder querer. Data dessa hora suave e triste o princípio do meu suicídio. Assombroso legado do poeta ao mundo indiferente, essas palavras, capitais, sempre me arrasam, por sua beleza trágica. Nunca iremos superá-las; sequer sondar sua profundidade. Abdico de um mundo justo ou, pelo menos, moralmente defensável - o mundo que todos os moralistas prometem, e são os primeiros a negar, com seus atos -.
Mas não abdico do amor, ainda que o saiba um impasse insolúvel. Campo Grande (MS), 25 de março de 2006.

sábado, 25 de março de 2006

De crimes e imposturas II

A revista Veja traz a seguinte contribuição à reflexão, neste domingo: A quebra do sigilo bancário do caseiro, praticada com o intuito de defender Palocci e desqualificar seu acusador, é um estupro constitucional como poucas vezes os governantes ousaram cometer no Brasil. O resultado da ação é um vendaval ainda em formação mas que já pode ser considerado o pior escândalo do governo depois do mensalão.
Pior do que roubar dinheiro público e, com ele, comprar a cumplicidade, o silêncio ou o apoio de deputados no Congresso? Sim, pior. Quebrar o sigilo bancário de um inocente para amedrontá-lo e impedir que continue acusando um potentado é mais grave constitucionalmente do que cada uma das ações miúdas reunidas sob o rótulo de "mensalão". Este foi orquestrado em cima, mas executado por asseclas secundários em operações de ilegalidade presumida porém não flagrante. Ou pelo menos não flagradas em pleno vôo. O sigilo do caseiro foi quebrado por um braço do Estado que se colocou a serviço dos interesses de um grupo político. Essa ação desperta os mais sombrios presságios sobre os atos autoritários que ainda podem vir por aí. "Quem faz isso faz qualquer coisa", diz Paulo Brossard, de 81 anos, ex-ministro da Justiça e membro da galeria dos grandes juristas do país. "A violação do sigilo tem caráter absolutamente ilícito, irregular e intolerável. É uma afronta ainda mais grave à lei porque parece envolver autoridades que deveriam conhecer minimamente seus deveres cívicos e públicos." (...) Até a noite de sexta-feira passada, a operação ilegal permanecia sem culpados claros. A CPI soube que a ordem para violar o sigilo do caseiro partiu do gabinete da presidência da Caixa, ocupada pelo petista Jorge Mattoso, mas não obteve nenhuma confirmação disso. O que se sabe é que a conta do caseiro foi bisbilhotada durante dezesseis minutos. A invasão ao computador começou às 20h50min25s e foi encerrada às 21h06min12s. Quem vasculhou os dados fez questão de ampliar a pesquisa, conferindo as informações bancárias do caseiro desde julho de 2005 – quando o escândalo do mensalão mal completara um mês de vida. Os governistas empenham-se em dar curso à versão de que o extrato foi emitido legalmente por gente com acesso autorizado aos dados. Não explicam, porém, como o papel saiu do banco para ser entregue à imprensa. A narrativa oficial é cheia de falhas. O indício mais eloqüente de que a bruxaria estava encomendada desde o início reside no fato de que o funcionário que entrou no computador tomou o cuidado de apagar seu rastro, eliminando do extrato a sua matrícula, ou seja, o número pessoal que serve para identificá-lo. (...) Permanece, portanto, o mistério de por que Francenildo passou a ser tratado como o inimigo número 1 do governo. O que levou o governo do PT, esse partido que chegou a fazer da ética sua ideologia, a assemelhar-se tanto com os momentos de vale-tudo dos estertores da era Collor? O escândalo atual é um emblema da ruína moral deste governo. Sua gravidade, porém, não está nos aspectos mais comentados. Não está no passado de sombras de Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, nas suas visitas furtivas ao casarão do Lago Sul, nas suas afirmações reiteradamente desmentidas em público ou mesmo nas acusações do caseiro Francenildo Costa. Não está na novidade mais recente – a de que a turma de Ribeirão, com Palocci à frente, também freqüentava uma casa em Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro, para onde se deslocaria a bordo do helicóptero de um bingueiro angolano. A gravidade do caso está mesmo é na inacreditável cadeia de ações criminosas patrocinadas pelo governo nas duas últimas semanas. O sigilo bancário e fiscal é um dos pilares das nações civilizadas. Ele protege os cidadãos. Nem Fidel Castro e seus barbudos assassinos buliram com o sigilo bancário nos primeiros momentos da Revolução Cubana. O governo Lula veio em um crescendo de ousadia. Primeiro, calou o caseiro com uma medida judicial, o que esteve perfeitamente dentro da lei, mas não deixa de ser truculento. Por que não deixar o caseiro falar e processá-lo por qualquer calúnia ou mentira? Depois disso, o governo estuprou-lhe o sigilo bancário para tentar desmoralizá-lo diante do país, agora atuando flagrantemente ao arrepio da lei. Em seguida, o governo desencadeou uma operação para acobertar os responsáveis pelo crime da quebra do sigilo bancário, com o intuito óbvio de proteger a cúpula da Caixa Econômica Federal. Por fim, o governo, talvez no seu movimento mais aterrador, abriu uma investigação contra o caseiro no âmbito da Polícia Federal, a pedido do Coaf, o órgão que fiscaliza as atividades financeiras no país. Sim, o caseiro, por incrível que pareça, de acusador passou a investigado. Ele é oficialmente suspeito de lavagem de dinheiro porque recebeu depósitos de 25 000 reais na sua conta. O caseiro diz que os depósitos foram feitos por seu pai biológico, o empresário Eurípedes Soares, do Piauí. O empresário confirma os depósitos, mas nega a paternidade.
"É coisa de gângster, de sindicato do crime", disse o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, sobre a perseguição ao caseiro. "Não é possível que persista essa retaliação a essa pessoa que teve a coragem de testemunhar contra a segunda figura mais importante da República." A investigação contra o caseiro começou a pedido do Coaf, mas toda a sua gênese é reveladora de que se trata de uma perseguição sórdida. Os bancos são obrigados a informar o Coaf sobre as movimentações financeiras atípicas de seus correntistas. Como o caseiro recebe 700 reais por mês, os depósitos de 25.000 reais feitos entre janeiro e fevereiro poderiam mesmo sugerir algo estranho. A Caixa informou o Coaf na sexta-feira, o Coaf informou a Polícia Federal na segunda e, três dias depois, já se investigava com o inquérito formalmente instaurado a suspeita de "lavagem de dinheiro" pelo caseiro. A rapidez e o empenho seriam elogiáveis se fossem a regra, mas são a exceção. Em 2004, os bancos fizeram mais de 85.000 comunicados de movimentações atípicas ao Coaf, mas o Coaf só se interessou por menos de 500 casos – ou seja, 99,5% dos comunicados foram ignorados. No escândalo dos bingos, o advogado Valter Santos Neto, suspeito de pagar propinas a autoridades, recebeu 5 milhões de reais da GTech, empresa acusada de subornar a Caixa. O advogado retirou parte do dinheiro em moeda sonante. Chegou a levar um carro-forte até o banco e não soube explicar como gastou o dinheiro. Foi investigado pelo Coaf? O Coaf diz que não pode comentar... Se, como afirma Brossard, "quem faz isso faz qualquer coisa", o que se pode esperar para o país quando o pior exemplo vem de cima? No Congresso, as absolvições de mensaleiros, inclusive dos confessos, estão virando uma rotina de deboche e acinte à opinião pública. No Judiciário, são freqüentes as intromissões na vida do Legislativo e os sinais de que há magistrados mais interessados em fazer política do que em fazer justiça. Para a sociedade em geral, o que deixa a sensação de que o país entrou no reino da bandalheira é o show ininterrupto de hipocrisia promovido pelo governo, materializado na sucessão de desmentidos peremptórios diante de evidências acachapantes. O presidente Lula não se encabula de dizer que o mensalão nunca existiu. Palocci disse que nem conhecia Rogério Buratti direito. Os dólares na cueca eram apenas renda de um modesto agricultor. Até hoje, o governo chega ao ponto de defender a inocência de Waldomiro Diniz, flagrado em vídeo – imagem e som, portanto – achacando um empresário de jogos! Nem sempre concordo com a linha editorial da Veja. No caso, a vertiginosa progressão de crimes inclassificáveis, praticados por pessoas usurpando altos cargos públicos me fez deixar de lado certas restrições, inclusive a não fatigar o raro leitor com longas citações.

De crimes e imposturas

O MPF entrou com um pedido de habeas corpus em favor de Francenildo dos Santos Costa. O objetivo da ação é barrar a investigação da Polícia Federal contra o caseiro, posto sob a suspeição de ter cometido o crime de “lavagem de dinheiro.” O caseiro teve seu direito à intimidade violado por ordem, sabe-se, de alguém no Ministério da Fazenda, por intermédio do bancão do governo, a CEF. É possível que o nome desse alguém freqüente, nas próximas horas, o Diário Oficial da União, seção de exonerações. Nas palavras de Josias de Souza, O Ministério Público sustenta que, na parte que diz respeito ao caseiro, a investigação da Polícia Federal é irregular. O crime de lavagem de dinheiro está previsto na lei 9.613, editada em 1998. Para que alguém seja investigado sob esse tipo de acusação, é preciso que haja clara intenção de ocultar a origem de recursos obtidos supostamente de forma ilícita. Algo que, na opinião de Pessanha Velloso e Lívia Nascimento, não ocorreu no caso de Francenildo (na foto, ao lado do prédio da sede da Caixa Econômica, em cujas dependências seu sigilo bancário foi violado). De resto, a lei traz uma relação dos delitos em que é possível apurar a prática de lavagem de dinheiro. Entre eles, por exemplo, terrorismo, seqüestro e crimes contra a administração pública. O caseiro não se enquadra em nenhuma das tipificações previstas na lei. A ação dos procuradores pede uma decisão liminar (provisória), antes da análise do mérito. Assim, caso concorde com a argumentação do Ministério Público, a Justiça pode determinar o trancamento do inquérito da PF a qualquer momento. A investigaçao policial foi iniciada na última terça-feira. O próprio ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, em ofício enviado ao procurador-geral da República, Antonio Fernando de Sousa, solicitara a indicação de procuradores para acompanhar o trabalho da PF. A decisão de transformar o caseiro de testemunha em investigado causou enorme surpresa ao Ministério Público. Os procuradores argumentam na ação judicial que a PF não pode investigar Francenildo no mesmo inquérito que apura o vazamento do sigilo bancário de sua conta corrente. Afirmam que, por ora, não há nenhum elemento que possa justificar o enquadramento do caseiro na condição de investigado. Para o Ministério Público, Francenildo não transgrediu a lei, “na medida em que em momento algum dissimulou ou ocultou a origem dos depósitos”. “(...) “Receber depósito em conta corrente própria é conduta que, a toda evidência, ao contrário de sugerir dissimulação ou ocultação, é revestida de absoluta transparência", anotam os procuradores. Também não seria possível, na opinião de Pessanha Veloso e Lívia Nascimento, trabalhar com a hipótese de que Francenildo tenha agido como laranja, uma vez que “as justificativas apresentadas por ele foram comprovadas”. O Coaf (órgão federal subordinado a Sua Excelência o ministro da Fazenda), que deveria investigar crimes como o de lavagem de dinheiro, mas que se recusou a ver o desvio de bilhões de reais do Banco Santos, perpetrado por seu controlador, decidiu que Nildo tem de estar lavando dinheiro, afinal movimentou 25 mil reais em alguns meses! Se você, raro leitor, foi imprudente ao ponto de movimentar mais que essa quantia nos últimos meses, corra, porque a PF pode estar na iminência de bater à sua porta, com uma intimação... A ver.

sexta-feira, 24 de março de 2006

Como chamar bandido de Vossa Excelência

Ricardo Noblat mantém um blog que funciona como radar da atividade política. Uma deputada dança em plenário ao ensejo de mais uma absolvição política e irresponsável. Noblat registra a indignação de um leitor: E-mail enviado à deputada Ângela Guadagmin (PT-SP) pelo leitor deste blog no Rio José Luiz da Silva Batista: "O Excelentíssimo Ministro da Justiça disse que "caixa dois é coisa de bandido" Vossa Excelência dançou ontem de madrugada no plenário da Câmara dos Deputados em comemoração a não cassação de um deputado que fez caixa dois. Quanto à dança de Vossa Excelência só posso dizer uma coisa: ainda bem que Vossa Excelência está na Câmara dos Deputados e não em um consultório pediátrico. Assim, pelo menos, as crianças se salvam. Eu sou um homem feliz, nobre deputada, por não ter filhos. Afinal deve ser muito difícil, muito complicado ter que explicar a uma criança, com base no que disse o Ministro da Justiça, que ela tem que chamar bandido de Vossa Excelência." Se fosse só na Câmara...

domingo, 12 de março de 2006

Scarlett e Coutinho

O português João Pereira Coutinho mobilizou toda uma coluna para desancar Scarlett Johansson, linda atriz norteamericana. Argumenta com uma suposta falta de classe, além das restrições de praxe à atuação da moça. Injustamente ele a compara a mitos como Audrey Hepburn e (suprema injustiça) Ingrid Bergman. Pobre Coutinho! As divas do passado são a alegria da arte mas, falar mal de Scarlett, Liv Tyler ou Cate Blanchett, bem, eu não gostaria de viver num mundo sem elas. Em tempos perpetrei o seguinte desatino: a trama de sentimentos de uma mulher é o ermo onde erram, pelos séculos intérminos, o coração dos homens, enjaulados, trespassados e famintos. A humanidade tem um patrimônio intangível que é o sorriso das mulheres. Pense o leitor no rosto de Charlize Theron. Os olhos da sul-africana expendem azuis capazes de reformar os arquivos do céu. Não me ocupo só do azul, mas também da meiguice, que induz devastadores incêndios sensuais. Talvez nem haja azul, e tudo é invenção minha, numa aprazível insanidade. Uma revista fixou-me os irrenunciáveis olhos verdes de Charlize. Tão verdes que parecia revogada toda a minha necessidade do Taiti. Que sabemos nós da cor dos olhos de uma mulher, se eles piscam e nos desmoronam? Se conseguirmos descer um pouquinho, encontraremos outras felicidades: o narizinho de fada, e a boca. Nenhuma prevenção vai nos livrar de urgente paixão por aquela boca. As várias formas de sorriso da moça, longe de apaziguarem, atentam contra nossa saúde mental. Se o sorriso é largo, vêem-se os dentes, no claro intento de triturar nossos corações. São grandes, perfeitos e, num beijo, é vedado tentar sobreviver. Se o sorriso é contido, melhor sorte não nos socorre. Acontece que o rosto, desenhado em leve e sensual auto-ironia, zomba de nossas tentativas de entender-lhe as festas. Em pacotes discretos, e sorriso de Charlize é arma muito mais impiedosa que o sorriso desabrido; sem a intervenção dos alvos dentes, me parece que nosso consumo é ainda mais certo. Muito diferente do sorriso de Audrey Hepburn, único império num corpo todo frágil. Audrey é toda graça, toda França, toda Tiffany. Agora, leitor, pense no rosto de Naomi Watts (mas eu poderia dizer Jessica Alba, Halle Berry ou Michelle Pfiffer, sem merecer censura). É difícil não pensá-lo. Sou perseguido por aquele rosto e aquele corpo de ninfeta, por toda aquela australiana. Bem diversa da indisputável (mas casta) beleza da havaiana Nicole Kidman. O inferno dessas ilhas do pacífico são essas deusas remotas. Quantas noites Naomi (e suas amigas) me arrastaram de sonho em sonho, deixando-me em ruínas. Quantas noites, após vagar de sonho em sonho, levado pelas promessas, pelos rumores de Naomi, acordei em sibérios lençóis, e ela se tinha recolhido à quadratura dos filmes... Kylie Minogue, atentada, ordenou e eu comprei seu DVD, e muitas outras coisas teria feito, agradecido, se ela ordenasse. Às vezes penso que Kylie é um artefato digital, inventada por algum demônio. Cada mulher é um continente. Suas sombras, seus desertos, seus vastos mares: de todo aconselhável se perder numa mulher, mapear seus sonhos. Necessária toda uma vida para descobrir-lhes as primaveras, as dorsais; as bacias, seus cursos e intercursos. Muitas mulheres não têm paciência com os homens, o que é deplorável. Somos bem devagar mas, com mapas, carinho e dicas, chegamos ao ponto necessário, ainda que com alguns dias, meses de atraso. Falar mal de Scarlett? Pobrecito! Eu bem que o condenaria a viver num mundo só de quebra-barracos.

O tempo

Adormecido, distrai-me um sonho qualquer, e de repente percebo que é um sonho. Costumo pensar, então: Isto é um sonho, pura diversão de minha vontade, e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.
Oh! incompetência! Nunca meus sonhos sabem engendrar a almejada fera. O tigre aparece, sim, mas dissecado ou fraco, ou com impuras variações de forma, ou de um tamanho inadmissível, ou muito fugaz, ou tirante a cão ou pássaro.
Jorge Luis Borges
Eu dormia o sábado, a tarde, guiado por um árduo sonho. Não é raro que eu sonhe. Nessa tarde eles pareciam aflorar desde distâncias esquecidas. Assegura-se que todos sonhamos, em todos os sonos, desde que durmamos o bastante. Ignoro se sonho todas as noites. Mesmo os sonhos de que me lembro, não me lembro tanto assim, e eles parecem forçados, como se não tivessem sido tudo aquilo. É fato que, quanto mais exijo de meus sonhos, mais eles entregam, constrangidos, roteiros ligeiros, o que induz ao cálculo de que sonhos não são muito rigorosos na administração de seus fatos, de suas verdades. Um dos primeiros livros com pretensões científicas da minha modesta experiência literária foi A Interpretação dos Sonhos. Trata-se de um constructo místico, no mesmo nível das cabalas judaicas, inservível para usos científicos. É um primor de prosa, se comparada aos textos indecifráveis do ex-psicanalista Carl Gustav Jung. Decalques em grego, citações calculadamente confusas, colagens de hieróglifos: nenhuma pirataria era grande o bastante para esse suíço. Com exceção honrosa de Roger Penrose, Noam Chomsky, Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Felix Guatari, Hegel, Martin Heidegger e um ou outro James Joyce, todos os livros que eu já li ganham com folga do pérfido Jung. Freud, em sua charlatanice, força a amizade ao impor-nos uma inverossímil realização de desejos aos sonhos, quando se sabe que, em sua antiga anarquia, eles seriam incapazes de realizar tarefas. Não importa. A barafunda de imagens e idéias trânsfugas que gostam dos sonhos não é auspiciosa para a realização de trabalhos. Nem consente qualquer certeza. Freud enxergava neuroses inofensivas nos sonhos; outros enxergam pequenas mortes, igualmente inofensivas. Uma escola recorrente de idéias confere propriedades terapêuticas aos sonhos. Por último, chegamos à tese da reorganização de redes neurais, uma maneira tortuosa de ressuscitar a idéia do recondicionamento da mente durante os sonhos. Classicamente, eles serviam de entreposto ao comércio de revelações divinas. Concertando caos e volúpia, os sonhos se prestam a muitas assertivas, igualmente peremptórias, igualmente desnecessárias. Ia dizendo que sonhei. Eu via meu guarda-roupa marfim sumindo atrás da verde parede que recusou quadros. Com seu poder de caos, o sonho logo supôs uma rica realidade ao fim do pequeno corredor que dá para a porta. Entrei a duvidar, sonho que era, do que me aguardava depois do corredor. Deparei com um espantoso deslocamento de tempo e lugar. Em vez de encontrar meu corredor azul, com um tapete geométrico a abraçar os cantos e indicar o progresso dos passos, vi-me numa sala ambiciosamente modesta, de uma casa de madeira escurecida pelo desejo do sol e da chuva, situada em Nova Andradina. Não me lembro dessa casa em particular, e parece que ela compunha-se de várias casas, a principal delas situada a umas oito quadras da Avenida A. J. Moura Andrade, à direita de quem chega à cidade vindo da Casa Verde. A sala, inerte, não deixava adivinhar quem morava ali, mas sugeria que, de algum modo, eu morava naquele deserto, guarnecido por um sofá em três peças, nenhuma delas adequada à féria. Uma mesa de castigada fórmica suportava uma toalha de cor incerta, e uma gasta bíblia estava aberta à cabeceira, com um marcador de páginas reclamando o céu. De modo algum a sala me interessava. Eu deveria estar no corredor do meu familiar apartamento, não nesse desvão inoportuno do tempo. Fugi para a rua, o que só aumentou meu espanto. Um sol castigava a madeira das casas, o chão da rua (a essa hora abandonada), compondo um quadro de árido, fustigante desdém. A rua em terra desnuda, estiolada pela excessiva luz do sol das duas da tarde, alinhava raros, toscos edifícios oprimidos pelo abandono humano. Ninguém por perto. Ao longe, o que parecia uma carroça quase alcançando um grupo de crianças. O ermo medrava em casas vazias, fechadas, de algum modo secretas. Perturbado com ter caído na cidade de minha adolescência, por volta de 1982, decidi que não toleraria aquele golpe do calendário. Depois reconheci a casa como sendo uma daquelas em que se celebravam cultos num dos dias da semana, das dezenove às vinte e uma horas. Compareci a muitas dessas cultuações místicas, sem outro proveito que a caminhada no início de noite. Voltei para a casa, entrei na lesta sala e tentei refúgio no quarto. Lamentavelmente, o quarto era apenas a esperada continuação de uma casa achada em erro: uma cama de madeira, alguns móveis que não merecem um relato. Meu confortável quarto, de enorme cama, paredes verdes e cortinas suaves se fora, fechara-se após meus precipitados passos. Não me ocorrera que a saída do quarto poderia ser fatal, num mundo de volátil calendário. Lamentei o destino, a meu ver injusto. Não sei como, mas concebi que, se eu dormisse ali, talvez acordasse em meu quarto, já restituído a suas formas naturais. Ocorreu-me, porém, que eu talvez não conseguisse dormir, ou que, em acordando, viesse a dar com um mundo ainda mais alheio, quem sabe desabridamente assassino, como o do final da década de 1930 e de toda a década seguinte. Um pouco de probabilidade me diria que as chances de acordar precisamente no meu quarto, no dia 15 de fevereiro de 2003, eram remotas. Poderia ser um dia qualquer de 2063, quando meu mundo estaria irremediavelmente extinto, ou uma noite de 1843, quando seu advento era pouco menos que razoável. Não me alegravam as fantasias de mundos alternativos, contingentes à ação descuidada de viajores intertemporais. Tratava-se da realidade, uma atroz realidade, de estar sofrendo um deslocamento arbitrário do tempo, essa confortável, habitável dimensão envolvente, com sua seta apontando sempre para a frente. A tarde desmantelada pela incúria do sol, pela insensata deriva do tempo, me era por demais gravosa para permitir proveito do insólito transporte. Tinha um encontro marcado com minha amiga naquela noite. Esses encontros eram preciosos. Como passaria sem? Se eu fosse vertido para o Brasil das grandes nações indígenas, anterior aos bandeirantes, e tivesse que aprender a manejar o cerrado, colher mel, caçar onças? Se eu tivesse de passar sem meus livros? Contra os prognósticos pessimistas, e após horas de espera atormentada, conciliei o sono, e alcancei sonhar. Após os argumentos de praxe, passou o sonho ao tema esperado, da viagem entre tempos. Percebi que o quarto voltava, verde, silente, tranqüilo. Já era possível ver a madeira amarela de fronte a mim. O quarto parecia recuperado, mas durante muito tempo não reuni coragem para transpor o limiar do corredor. Campo Grande, em 2003

quarta-feira, 1 de março de 2006

Templos e o fogo

Jorge Luis Borges nos conta de múltiplos templos de ruínas circulares, em que medra um personagem que era muitos, porém sonhado. Entre tantos elementos, somente o fogo era seu amigo, e o sabia irreal. “Na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul”. Esse homem sabia “que sua obrigação imediata era o sonho.” Sonhou uma nuvem de alunos taciturnos, que esgotavam os degraus de um anfiteatro circular: “os rostos dos últimos pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos”. Insatisfeito com aceitarem passivamente sua doutrina, o mago diplomou para sempre esse vasto colégio, em prol de um único aluno, mas também este ruiu, como ruem os sonhos excessivamente rebuscados. Industriado pelo Fogo, que lhe ministrou magias, ele finalmente concebeu o filho. Sonhado em todas suas minúcias e instruído nos ritos, foi enviado rio abaixo, para oficiar em outro templo. Tempos depois, já tendo ouvido falar das artes do filho, nas ruínas de um templo circular rio abaixo, o mago se viu cingido pelas chamas. “Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.”

sábado, 25 de fevereiro de 2006

Um sumário

1. A miséria. Numa mesquinha manhã da periferia de Déli, mendigos, numa rotatória. Velhos e crianças; homens e mulheres. Um velho saía de uma furna improvisada no canteiro. Em sua expressão os piores infernos se congratulavam e zombavam de nossa esperança e boa vontade. Ele parecia ter esgotado todo o estoque de dor do mundo, e escovava os poucos dentes. Não pude com aquele velho. Todos que naquele momento por ali passavam se transformavam em Mengeles, pouco importa se, olimpicamente, não o soubessem. Os amigos do velho interagiam, ocupados com o café-da-manhã, inexistente ou atroz. Pensei em registrar esse mal-estar fundamental, antes que ele se transforme em mero ruído vestigial de uma viagem. 2. De minha cama no hotel em Phnom Penh via o Mekong. Sua vasta rede de canais medram na selva e presidem o Camboja, esse estado de coisas que nos esforça a alma. Na subida de barco de um dos rios que encontram o Mekong em frente ao hotel, uma criancinha explorava a selva com seu poderoso navio que mais bem examinado era uma modesta bacia. Sob luz amiga do dia inicial, o Mekong mostra toda a fortuna da Ásia. Um madrugador balé de canoas, com pescadores e comerciantes, voluteia e aviva o rio. 3. O povo japonês. À exceção do chinês, que trabalha em massa desde as 7 da manhã, não há como o japonês. Mesmo na mais modesta lojinha os funcionários correm para atendê-lo. Correm normalmente, sem ninguém que a isso os obrigue; sem hora de fechamento nem visita do patrão. O Japão impressiona fortemente. Nas ruas a ordem, o respeito, o poderio econômico. Em todos os móveis urbanos, circunspecção e mais respeito. Não se consegue detectar uma única mancha, uma única pichação em nenhum viaduto, de resto polidos como se decorassem uma sala de estar. Mas nem tudo são delícias. Às vezes, em algumas lojas, você é surpreendido com insistentes gritos dos vendedores. O que são esses gritos, a quem se dirigem? Não ficou claro. Dada a repetição, histérica, se parecem com gritos de pânico num bando de macacos imaturos. Conhecida a estridência, dir-se-ia que é iminente um maciço ataque de predadores. Não perguntei o motivo dos gritos, se pavor ou excentricidade, numa cultura quanto ao mais avançada. 4. A muralha chinesa. Após uma hora de carro, do aeroporto até o centro de Beijing, uma chinesa que podia não ter mais que 1,80 m, mas tinha o porte, a altivez e a impenetrabilidade de uma torre dessa muralha que corta a vasta Ásia e instrui astronautas. Com seu longo manto, gorro e botas vermelhas, dir-se-ia que a formidável chinesa nem tanto recebia os hóspedes, e sim que os consentia, com uma saudação quase marcial. De pé, impassível apesar do frio glacial, hirta como um símbolo, ela era mais eficaz que todo um batalhão do exército chinês. Era a própria muralha, de rosto impensavelmente marcial e feminino. Ao cabo de alguns dias, reuni coragem para dirigir-lhe a palavra. "Ráo", foi o que pensei ter ouvido em resposta (a expressão é uma saudação, vim a saber depois. Inteira, soa algo como Oh ráo). Havia outras dessas muralhas, todas em impecável longo vermelho. Embora com jurisdição limitada à portaria do Novotel de Beijing, a ira de uma delas bastaria para te arruinar por toda a China, leitor. 5. Corumbá. Vim de inopino, aproveitando a carona do amigo Gilberto. É tempo de carnaval, mas terão de perdoar eu não ser folião. Na primeira parada do improvisado safári fotográfico fomos recebidos por uma importante delegação de muriçocas, que prontamente nos convidou para um banquete. O repelente mostrou por que foi escolhido pelo exército francês, e acabei alijado do festim. Os bichos estavam por toda parte e colaboravam com o fotógrafo, desastrado. Um gavião posou pacientemente por uns 15 minutos até eu achar a regulagem da máquina. Um garboso veado pantaneiro se submeteu a uma demorada troca de lentes até os cliques que lhe eram devidos. Um casal de tuiuiús fez longa dança conjugal enquanto o vôo de outros pássaros, previamente combinado, emoldurava a paisagem. Uma simpática porca ficou feliz ao ser fotografada, com todas as suas opulentas arrobas. Muitos biguás, e toda a parentada, foram sondados, numa tentativa de registrar essa prodigiosa farra de aves que é o pantanal. Desde o galho, um deles se jogou na água, para fugir da câmera ou conversar com algum peixe, não sei. Os jacarés pareciam magoados e não compareceram. Os poucos que vi eram filhotes ou adolescentes assustados e declinavam os cliques. Com tentar fotografá-las, frustrei uma reunião de anhumas no alagado oposto à cidade. Algumas se deixaram registrar, enquanto outras, avessas a publicidades, se reuniram às amigas na Bolívia. Ninhais, inacreditáveis ipês de cores incendiárias; lagoas na vazante, forradas de peixes, jacarés e aves: sinto-me na obrigação de estudar melhor os ciclos de seca e cheia, vida e morte nesse vasto santuário. Corumbá, 27 de fevereiro de 2006.