terça-feira, 26 de julho de 2011

Islanðia

Gente, a Islândia é o que há.

Hoje, snorkelling na fenda de águas azuis que demarca o encontro das placas americana e euro-asiática. Água a 0°C, e nenhum frio. Coisas do mergulho seco.

Hotel boutique, vinho francês, chocolates Godiva (tudo do free shop - isso de free shop, tem de levar a sério, se quiser sobreviver com alguma dignidade na Escandinávia), enfim, quem tem medo de viajar?

Amanhã saio cedo para ver as baleias. Sabem, depois de ter comido (inadvertidamente) algumas delas (em bifes ou defumadas), está na hora de vê-las livres, belas e gentis.

Abração a todos.

sábado, 23 de julho de 2011

Svolvær

Após dias navegando ao norte, cheguei a esta cidadezinha nas ilhas Lofoten, de grande beleza. Fica no circulo ártico, o que significa frio, mesmo no auge do verão.


As ilhas são encantadoras, e ontem pudemos ver águias pescadoras em plena ação. O bacalhau é precioso, e pode ser pescado em toda parte. Amanhã regresso a Oslo, atingida pelo horrível atentado dessa semana. Fico um dia e embarco para a Islândia.

Todos com quem conversei insistem que a Islândia é o lugar. Vamos ver.

sábado, 16 de julho de 2011

Noruega

Após a linda e pacata Copenhague, Noruega. Oslo, só vou conhecer quando voltar do ártico. Fiquei numa pista de esqui muito longe, com uma rampa que pretende chegar ao céu.

Daí, fui para Bergen, no litoral oeste, a capital do ecoturismo e da aventura. A travessia de trem até Flåm é, de fato, a mais bonita do mundo, sem nenhum favor. Depois, desliza-se pelas águas profundas de Sognefjord - em tudo o fiorde dos Sonhos. Muros de centenas de metros de altura caem direto no azul da água, e indicam o caminho.

No fim de uma tarde dourada, fui ao mercado de peixes, em frente ao Bryggen, bairro de pescadores, de origem alemã. Encontrei umas comidinhas e, sem almoço, fui às vias de fato. Varado de fome, pedi King Crab, bacalhau e mexilhões. Tudo fresco. Espertas, as moças tentaram me empurrar uma baleinha. 

Resisti. 

Enquanto pude. Só o tempo delas adivinharem minha curiosidade e cartão de crédito. 

E assim eu, Gerson Noronha Mota, súdito de Sua Majestade, a Santinha, provei minha primeira e detestável ração de baleia. No caso, um suculento granito de um negro absoluto e sabor tirante a mil bois degolados. 

A cerveja deles, com teor alcoólico 2,5°, refresca, mas não faz nem cócegas. 

Hoje, em Stavanger, ao sul, subi à Pulpit Rock, o destino mais famoso da Noruega. É um palco de pedra, perfeitamente quadrado, a 604 metros sobre o fiorde, onde brincam uns barquinhos. Um monumental maçico de uma beleza intoxicante. 

Agora, saio para o jantar.     

sábado, 9 de julho de 2011

Copenhagen

Olå pessoal. Em Copenhaguem, finalmente. 24 horas em avião-aeroporto, inclusive o de Frankfurt, de grandes esperas.

Copenhaguem parece uma cidadezinha da Nova Zelândia, com tudo de bom que isso representa. Amanhã saio para uns castelos, uns restaurantes, uns museus por aí que nem tive tempo, porque cheguei cansado. Da minha epopeia, esta é a primeira capital que permite chegar ao hotel à pé, sem táxi, nem nada.

No Latin Quartier a DJ Nanna "atira Buraka Som Sistema para a pista de dança. A multidão loira agita-se, pelos vistos já conhece o kuduro da banda portuguesa", informa uma revista.

Esse negócio de kuduro, não me animo muito não. Kuduro, cada um tem o seu, e não é da conta de ninguém, não...

Taca a Buraka, Nanna!

sábado, 18 de junho de 2011

Arrombando a República

Fica assim: atrasamos as obras em alguns anos, o bastante para comprometer por completo o cronograma. Depois, saímos por aí em pânico ante o descalabro, completamente imprevisto e imprevisível. Que fazer? Decretar uma lei liberando o arrombamento geral da República. Coroada por dispositivos que proíbem a divulgação das cifras, e a fiscalização pelos órgãos de controle. O Estadão retratou a coisa toda: 

E, na undécima hora, baixou as persianas por completo. Os órgãos de controle não só perderam a prerrogativa de se manter informados em qualquer etapa da obra - o governo é que decidirá o que lhes repassar e quando -, como ainda ficarão proibidos de tornar pública a documentação obtida. Atribui-se à ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, o argumento de que a Constituição admite o sigilo quando do interesse do Estado e da sociedade. É tratar os brasileiros como um ajuntamento de pascácios. O único interesse que essa obscenidade preservará será o da corrupção. O sigilo impedirá um Tribunal de Contas de instruir um processo em casos suspeitos.

A votação da MP não está concluída. A Câmara ficou de deliberar no próximo dia 28 sobre os destaques acrescidos ao texto. Quem sabe será possível então torná-lo um pouco menos acintoso.


Eu tenho esperanças, contudo. O PGR Gurgel parece ter entendido do que se trata.  

domingo, 12 de junho de 2011

Músicas

Conforme prometido, vou comentar algumas de minhas músicas prediletas, de memória, por mera ociosidade. Tenho em mãos trabalhos de crítica musical, que não vou consultar.

A Força que Nunca Seca
Vanessa da Mata nos conduz por um domínio musical despretensioso, intimista. O refrão ilê aiê é doce e aconchegante. Na intervenção final, acompanhada por um violão precioso, ficamos sabendo que estamos felizes. 

Ao Crepúsculo. Custa-me falar dessa música. A Teresa, das intervenções raras, nos arrasa. Não posso colocar em palavras o que sinto com o refrão, um lamento tristonho, de uma beleza inaudita, que nos envia a contramundos chorosos, plenos de humanidade, em que um amor foi perdido, e não sabemos como, por quê. Os violões não fazem senão confirmar a genialidade da moça, conduzindo suavemente a melodia, sem interferir no argumento geral da canção. Quando vou dormir, escuto o gemido: uuuuuhuuuuuuh, e me encolho todo. Parem tudo: um amor foi perdido. Urge um inquérito geral para determinar se o mundo comporta amores que se demorem uma vida; se o amor pode triunfar sobre a fátua mesquinharia. 

A mesma Teresa, em Suave Tristeza, nos fala de um olhar cansado, que expende tristezas. A rima, a voz poderosa; a lealdade dos violões: tudo evidencia a felicidade dos dias da Madredeus, mais confirmada na Música Celta, outra realização de espírito. O Pregão convoca e consola, ao mesmo tempo. 
  

Oxalá é um fado das excelências, um corte profundo na alma portuguesa, no que ela nos é mais fecunda.


Agora, corte para a baianinha Mercury. Minas com Bahia é um axé tristinho, com uma letra que nos toca na altura da última estrofe: sacudir o mundo, procurar no fundo... Uma hora dessas, e você tão só, eu ficou com dó eu só disse: oh, eu te quero muito bem... Tem um carinha que acompanha. Quem será que é? Ora se não é o Samuel Rosa... Num show fica explicitado o paradoxo de uma música tão envolvente, impossivelmente dançante, e uma letra melancólica. Os bailarinos saltitam alegremente, e os tambores tuntunam, concernem festas. Uma moça parece sopisar os Himalaias, sob a autoridade dos tambores, e gira com a alegria de uma criança, num spinning sincronizado com Daniela: lirismo, sensualidade, e certa generosidade baiana. Ela ainda nos presenteia, no mesmo álbum, com Bandeira flor, um hino a esse estado de coisas que é a Bahia. A música começa estranha, com metais em tudo fake, quase mexicanos, mas logo evolui para refrões de pura baianidade, com toda a irresponsabilidade que isso implica. Fortemente dançante, com uma percussão de alta octana.    


Corte para uma mulata que admiro: Tina Turner. Não necessitamos de outro herói. Nunca me dera conta da importância e necessidade desse refrão, até saber da prática de nomear os militares norte-americanos com esse epíteto, por mais improvável e surrealista... Tina demonstra um domínio absoluto do canto quando, em definitivo, convoca: all the children say! e elas cantam, lindamente.    


Private Dancer conta uma angústia, ainda que não nos atenhamos à letra, que ignoro. Novamente, domínio absoluto, numa melodia que requer todos os poderes da voz dessa mulher incomum. Help é um lento caminhar num jardim musical aprazível, marcado por essa voz, de poderes.  Em Two People notamos o ritmo e a harmonia nos convidando para uma florida aléia cheia de humanidade e decência.  


E já que, desautorizadamente, me permiti sentimentalismos, vou falar de uma música sentimental, piegas talvez: Memory. Invoco uma recordação: Cats foi minha primeira peça na Broadway. Uma orquestra aninhava-se no fosso. O musical se desenvolve, com toda a gataiada pra lá e pra cá no palco. A certa altura sobressaem uns acordes da mais fina e agradável guitarra, numa convergência harmônica com a orquestra. Então, na altura em que algumas peças se tornam cansativas, quando o desânimo tomara conta de gatos contemplativos, e quando parecia que Memory não tinha mais a oferecer - ou pelo menos surpreender - surge uma voz deliciosa, vigorosa, que ganha a lua, e anuncia: Touch me, It´s to easy to leave me (...) If you touch me, You´ll understand what happiness is... Estremece a platéia. De enlevo, saio pela Broadway em meio às brumas de uma lua hiemal. Um restaurante me acolhe. Acho que sou feliz. 

Linda Juventude. Sessão nostalgia. Com Planeta Sonho, sugere uma trilha sonora para nossa juventude, com todo o seu vigor e tendência ao sonho... 

Céu é uma cantora de difícil pesquisa, quase ignorada pela imprensa. A gente não sabe onde vive, quem é. Sabemos apenas que viveu no exterior (ela tem sotaque), e sua música é maravilhosa. Em Papa ela ensina a não se tomar tão a sério, e conclui com uma gargalhada, demonstrando a lição. Ponteiro começa séria, meio pesada. Aí ela pronuncia, quase angustiada, o refrão teeeempo com uma gravidade, uma peremptoriedade que parecemos restar às portas de um horizonte de eventos, o tempo derrapando em espaço, e vice-versa. Afinadíssima, a moça demonstra virtudes em BubuiaRosa Menina e muitas outras.       


Elton John. Suas músicas comovem, não sei explicar. Goodbye Yellow BrickSad Songs e Skyline Pigeon nos ganham de primeira, o que se explica pelas harmonias intensas, e pela afinação do back vocal, quase excessiva. Ainda assim, Skyline é um ponto fora da curva. O pianinho desenvolve toda uma argumentação através da tessitura melódica, enquanto a voz de Elton, aveludada, bondosa, melíflua, conduz-nos por paragens de fantasia e confortos.    


Minha banda de rock predileta segue sendo o Led. Para uma versão ligeiramente apaixonada de D'yer Mak'er, com Sheryl Crown, clique aqui.


É chegado o momento, contudo, de fazer uma séria ressalva, de caráter geral. Fiz uma versão da letra de Skyline e fiquei ligeiramente desapontado com a condução da temática e expressões usadas. Mas isso é nada comparado com a versão de Lucky in Love, de Jagger. Ainda que eu não seja a pessoa mais indicada para verter textos do inglês, foi decepcionante. A letra é simplesmente tosca demais, além de conter expressões próprias apenas a uma, digamos, minoria.      


Não sou desses que pretendem adequar letras de suas canções preferidas a seu estilo e filosofia de vida (se é que isso existe): algumas das músicas de que mais gosto têm letras descuidadas, ou obscenas, ou tolas, ou enviesadas, ou agressivas, ou piegas - ou tudo isso junto. Um exemplo preocupante é Bob Dylan: poeta pop, suas letras resvalam para um hermetismo bocó, com citações e paráfrases que vão do tolo ao infantil, passando-se por coisas profundas, místicas etc. Pelo menos as poucas que tentei verter. Um texto obscuro é, quase sempre, apenas isso mesmo: um texto obscuro, mal redigido. Não há verdades ocultas, secretas, inalcançáveis, mas apenas o cansaço, ou a pressa, que venceram o autor e zombam da boa vontade do leitor. No caso de Dylan, talvez a coisa seja mais simples, e se explique pelo abuso de heroína. 

       

Para ser justo, mesmo os libretos das grandes óperas contêm, às vezes, textos descuidados, fátuos, pobres, indicando que o autor tinha pouca intimidade com a poética, ou sucumbiu sob um prazo irrealista. Em alguns fica nítido o esforço para construir uma história do agrado do público, que coubesse na partitura, e nada mais. Onde está a poesia, a transcendência? Acho que é pedir demais... E o problema é mais grave do que se pensa, porque algumas dessas melodias estão entre as mais glorificadas realizações do espírito humano em milhões de anos...


E já que falei de letras problemáticas, considero Lucky in LoveHonky Tonk Woman e Start me Up as melhores produções dos Stones. Em Honky, os riffs são uma realização de alto nível: a Strato Fender - metálica, quase desafinada, de tão poderosa - urra como um leão despedaçado pelas flechas da perfídia. Lucky tem um refrão esperto, com uma guitarra bem resolvida, que sabe o que quer e tem meios de chegar lá.


Estabelecido o problema com as letras, voltemos a atenção para quem as tem até demais: Zero. Esquecida banda dos anos 80, nunca fez sucesso. Seus integrantes liam (e parafraseiam) Karl Marx. Quimeras é uma canção emblemática: a letra explicita um desengano; a melodia, em tom menor, é melancólica, sem ser depressiva: anjos do bem vão te mostrar uma luz maior, capaz de convencer que um mundo bem melhor existe em você... Eu não vou mais fugir de mim... A Luta e o Prazer é outra composição de grande cuidado estético na letra, com uma execução melódica simples: mas se o amor chegar/ sem pedir licença/ nos brindar com sua presença... Você vai lembrar de alguém/ que cantou há muito tempo essa canção..Agora Eu Sei tem a letra mais incisiva e significativa. Parece leitura ligeiramente marxista das relações humanas, num bom sentido: tem gente boa que me fez sofrer, tem gente boa que me faz chorar. O refrão merece um destaque: Quem vive mente mesmo sem querer, e fere o outro não pelo prazer, mas pela evidente razão de sobreviver... Raramente uma banda brasileira laborou tão bem, descontadas as paráfrases. Participação especial de Paulo Ricardo, o que me lembra... Loiras Geladas e Olhar 43, do RPM, duas musiquinhas que são a cara dos anos 80.


Duran Duran. A Matter of Feeling, que só fez sucesso no Brasil, tem uma gostosa melodia. Um leve toque de inquietação é bem servido pelo colorido da voz de Le Bon. No refrão final destaca-se uma harmonia suave, que também marca American Science (esta acrescida de um baixo com riffs próprios, muito a propósito...).
                 

Tendo falado do mais fácil, vamos ao difícil. Não conheço teoria musical, nem leio notação musical, então, meus comentários resultam um diletantismo desinformado, na melhor das hipóteses. Importam-me as impressões que as músicas produzem, e nada mais.        


As Bodas de Fígaro. É a melhor ópera de Mozart, junto com A Flauta Mágica, e uma da melhores de todos os tempos. Cinque... Dieci... e Non So Piu Cosa Son soam como exemplos do gênio em sua glória maior. Após muitas tentativas, e mesmo no contexto da genialidade de Mozart, considero Voi Che Sapete uma realidade autônoma inabordável. Trata-se de um banho de felicidade num mundo que, por ora, não concluiu o inquérito para saber se o amor é possível, se é tolerável. Mozart nos ensina que o espírito, em cultivos, pode transcender o mar de mesquinharias da luta pela posse de objetos que nos induziram a desejar. Somos inundados por uma generosidade ilimitada, uma música que liberta, renova, pacifica.       


Na Flauta temos o mesmo mágico transporte a reinos risonhos, prevenidos das asperezas e imperfeições do cotidiano. Ainda que alguns não aceitem o convite de Mozart - por absoluta precariedade de espírito - os felizardos somos promovidos a astros, a vogar por entre corpos celestes de harmonia e encanto. Sou outro no retorno desses êxtases; que é meu dever transmitir esse lenitivo a um mundo essencialmente insatisfatório.   


Em tempos escrevi, deslumbrado:


Vá desculpando o leitor que nunca ouviu a Flauta Mágica, de Mozart, mas quando, no Ato I, a Rainha da Noite começa seu longo solo (5º movimento), culminando naquela inteiramente feliz vitória da voz feminina, a reivindicar todos os poderes, sempre me emociono. Ou quando Pamina, no 8º movimento, inicia aquele sobrenatural dueto, que sempre enternece e induz ao bem (e ao qual sempre volto). Em todos esses movimentos, densa tessitura musical; escapamos de nossa ordinária órbita e passeamos por regiões eternais.


Nem mesmo a simbologia maçônica, que infesta a Flauta, é suficiente para desmerecer a obra, advogo.


O Barbeiro de Sevilha situa Rossini no mesmo patamar de Mozart, num gratificante beneficiamento da alma. O autor usa as armas da ironia e do cômico para transmitir uma mensagem estética poderosa e movimentada. Abstraída a letra - uma historieta que não ignora pequenas perfídias, por vezes alheia ao grandioso conjunto melódico - aprecia-se melhor a composição.


Pace e Gioia Sia Con Voi. A música provê asas para nós, coisas lestas e cansadas. Um novo mundo é convocado, com um novo céu e uma terra mais propícia, e seres, magnificados, emitem auroras de si mesmos, dissolvendo tristezas e mesquinharias. Tanto mais se lucra quanto se toma a saudação pace e gioia sia con voi por seu valor de face, relevando o resto da letra.  


All´idea Di Quell Metallo. A certa altura nos percebemos às voltas com uma dupla sertaneja, num sentido alheio a toda cafonice: as vozes se misturam e se afinam, num discurso de primores. A 5'40" insistem as cordas numa exortação vigorosa, magnânima, que eu não saberia descrever sem recorrer ao termo maravilhoso.  


A alegria de Largo al Factotum contamina e bloqueia a chatice, a mesmice. Mesmo crianças intuem, na hora, o burlesco e o fantasioso numa composição frenética, extravagante em sua felicidade musical.


Una Voce Poco Fa. A voz feminina em esplendores. O império da doçura, a favorecer nossa edificação mais humana. Culminâncias que acionam festas em nós. A soprano emite um poder que só posso atribuir ao amor, à vida.    


Na Sinfonia número 5 (Op. 107, "Reformation" Chorale: Ein' Feste Burg Ist Unser Gott), Mendelssohn realiza todo um programa anímico, que nos projeta por instâncias não locais, em direção ao eterno.     


Por mais que tente, eu não poderia ignorar O Coro dos Peregrinos, na Tannhäuser, de Richard Wagner. Um coral majestoso, como uma cordilheira altaneira, com seu alvo festão, eternecendo uma cidade. A certa altura as vozes masculinas ganham o primeiro plano. Ao fundo as mulheres elaboram a mais veemente defesa da beleza, sustentando uma grandiosidade própria de vastos agregados anímicos, louvados em suprema bem-aventurança.         


Carlos Gomes, com O Guarani, coloca o Brasil no contexto das grandes óperas. A introdução, abusada na horrenda Voz do Brasil, parece anunciar que coisas horríveis são iminentes, um novo AI, talvez. Após dois minutos, contudo, sai o velório e a leveza toma conta. A 5' a alegria desabrocha, numa valsa deliciosa, cheia de carinho inaudito, como se fora uma criança que descobre um jardim e dele se apossa. Esse tema é retomado e enriquece os atos Ic [4'18"] e IV Coro. Turíbio Santos tem uma interpretação maravilhosa da abertura, num violão de talento.   


Pomp and Circumstance, do inglês Edward Elgar: de um caráter marcial benigno, a melodia comunica retumbantes vitórias, de batalhas que nem sabíamos que traváramos. Toda vez que ouço, sinto que venci algum medo, alguma astuta perfídia. Sua inserção no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, nos enche de espanto.       


Chariots of Fire, de Vangelis, projeta uma robusta ponte entre o agora e um futuro de virtude, honra, alegria e, quem sabe, amores. Concebo I Hear You Now como um apelo à bondade, ao menos provisoriamente.


Roberto Correa busca incessantemente a perfeição. Se, em Crisálida, ele obtém um violão espantoso, em Uróboro somos assaltados pela mais formidável viola de cocho que já existiu. Exótica, agradável, dificílima, numa execução que assombra. Sentimos que a perfeição, sempre quimérica, sorriu para Correa. Várias vezes, seja a 300 km/h através da Provença, seja ao contemplar o por do sol no convés de um barco que adentrava o porto de Bora Bora, fui às lágrimas, sob a autoridade dessa viola, de sentimentos.                  


Outro violão de poderes é o de Villa-Lobos. No Estudo n. 4 tem-se um discurso difícil, angustiado e nobre de um violão vitorioso. Na mesma obra, outros estudos, prelúdios e choros evidenciam a realeza de Villa-Lobos.   


Nos mesmos domínios destaca-se o imprevisto Marcelo Loureiro, daqui mesmo, de nossa planície pantaneira. Com um violão intenso e engajado, ele promove a releitura de temas pantaneiros e da imensa tradição desse povo que se debruça sobre o Paraguai-Prata, mas com tal sentimento e virtuose que percebemos estar diante de um mestre indiscutível do violão, irado. Presenciei um Pássaro Campana tão inacreditável e apaixonado que pôs em transe todo o teatro Rubens Gil de Camillo. Marcelo nunca gravou esse delírio, o que nos empobrece. Em Loureiro, toda a fortuna do violão caboclo, paraguaio, correntino, andaluz: universal.


Concluindo.


Talvez o leitor se agaste com essa mistura de Duran Duran, Edward Elgar e Rossini. Procurei um texto assim, que se perdesse em impressões pessoais acerca de nosso inesgotável haver musical. Em não encontrando, resolvi perpetrar este. Nossa era carece de testemunhas honestas, que digam o que vêem, o que sentem, sem tuitagens e outras aniquilações do mundo. Ouvi as músicas, senti o que tramavam transmitir ao nosso século - ignorando a intenção dos artistas - e anotei este resumo. Que importa o resultado?


O texto concede algum caos, alguma bagunça; certas lambanças, prontamente confirmadas por imprecisões e temeridades. Quem tiver necessidade de desatinos encontrará seu texto definitivo.  


Pode-se reclamar de parágrafos saturados de adjetivos, do barroquismo de tentar esgotar o tema, da angústia em transmitir tudo ao mesmo tempo, como se os motores de busca fossem depressa ratear. A emissão de sentenças estéticas irrecorríveis também aborrece, num contexto de irredimível opinionismo.


Quem tem medo do opinionismo?     


Procurei um texto que pertencesse às impressões pessoais, refletindo nossa fortuna musical. Os adjetivos, indefesos, abalaram pelos parágrafos como pontos flutuantes num cálculo colossal. Já se sabe: a música é minha riqueza pessoal.


A música tem esse poder, do transporte anímico; provê um diálogo complexo entre nossos sonhos. Nos sentimos a própria criança que se descobre em um jardim e toma posse de um novo eu. Glorificado.    

sábado, 7 de maio de 2011

Consumismo

Eu vinha de flertes com uma máquina de lavar roupas. Oito quilos e meio, branca, e uma escotilha de submarino, à guisa de tampa.


Lava, seca, esteriliza, perfuma e acaricia. Água quente, fria ou tépida.


Tem umas luzes de nave espacial, e comandos digitais com barulhinhos (de nave espacial).


Comprei-a, pela internet, a preço tão módico que minha mãe decretou: "foi roubada".


Apesar dos testes, bem sucedidos, não me ocorre lavar roupas nessa máquina, uma peça que seja.


Tampouco detectei qualquer inclinação a lavagens automatizadas de roupas em minha secretária.


E, contudo, me apraz.


Não é raro eu deter os estudos, a contemplar seu funcionamento; comparar com as inacreditáveis previsões do manual, testar seus limites argumentativos. A bolha translúcida, o carrossel de aço inox, o lúdico painel. Já a enchi e esvaziei algumas vezes, e também testei diferentes dosagens de amaciantes e detergentes.


Às vezes, fugindo à aridez dos estudos, troco algumas idéias com a máquina (nos dias em que ela está mais receptiva).


Poder-se-ia pensar que eu me envergonho da compra, que penso em trocá-la por algo mais prático (um maçarico, um pandeiro, por exemplo).


Nada disso.


Até já quis comprar mais uma, idêntica à primeira, de tantas alegrias.


O leitor talvez suponha que ninguém sabe da máquina, que é mantida a salvo da sindicância dos vizinhos, dos amigos. Pois é a primeira coisa que procuram, assim que chegam: “e nossa máquina?” ou “não está tentando esconder nadinha mesmo de mim – uma nova máquina, por exemplo – não é mesmo, Nhonho?”


Entrementes, comprei uma nova cadeira. Quem adivinha o grande potencial de uma cadeira?


Sabe um trombone? 

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Banco de investimento

Sobre bancos de investimentos, seu difícil relacionamento, conto minha experiência:

- Sim.
- Aí não é do Pactual, é?
- É.
- Então... Sabe o que é, eu gostaria de investir nesse banco. Vocês ainda fazem investimentos, não é mesmo?
- É possível.
- E ainda toleram clientes?
- Listen! Não saímos por aí gostando de ninguém que tenha menos de um milhão de reais.
- Não, eu também não - disse, para não perder a rica amizade, recém conquistada - mas, será que vocês não poderiam abrir uma exceçãozinha?
- Mas aqui consta - de repente houve um dossiê no desk da funcionária - que você namora uma moça que também tem menos de um milhão de reais. Como é possível?
- Isso de ter menos de um milhão de reais, não sei como foi acontecer, mas estamos quase terminando...
- Não é o que consta, mas vou ver o que posso fazer. Você está pedindo muito!

Depois disso, foi fácil: transferi meu dinheirinho para uma instituição que não estou bem certo se existe, já que nunca fui convidado para um cafezinho. De vez em quando eles até mandam uns extratos, que tento decifrar. Os jornais juram que o Pactual existe, e até foi comprado pelos suíços do UBS, mas receio que os jornais que me chegam abriguem sutis diferenças com a versão de outros assinantes, e que alguns bancos ali mencionados já foram extintos, ou nunca existiram. Depois, passaram a afirmar que foi recomprado por um antigo funcionário, que renunciou ao cargo de office boy para assumir as dores e ingratidões de ser dono do banco. Soletro o nome: André Esteves. Será que existe o nosso Esteves? Que maroto, esse Esteves. Será que ele tem mesmo um banco?

E o que é um banco? Ora essa, quem não sabe o que é um banco? Um prédio alto, imponente, piso de mármore. Usualmente embandeirado. Tem um lance de cofre, boca de lobo, não sei não.

Sempre que ligo, para ver se está tudo bem – com o Esteves e com meu dinheirinho – alguém atende, mas parece não se recordar de uma nossa conta:

- Sim.
- Aí não é do Pactual, é?

Isso foi há muito tempo. Depois tivemos a crise de 2008, e as amizades ficaram menos fáceis. 
   

Horóscopo

Luís Fernando Veríssimo exercita - no jornal Zero Hora, onde começou sua carreira - seus dotes de adivinhação, num momento em que perdemos Sai Baba e o nosso Pai Mariola não anda se sentindo muito bem, a julgar pelo índice de acertos de suas previsões da loteria (só jogo os números mágicos que ele determina). Apreciemos: 

Áries 
Atrás de você, cuidado! Brincadeira. Você não sofrerá nenhuma ameaça. Nem tudo será perfeito, claro, mas quando a vida lhe sorri, não importa que ela não tenha alguns dentes. Agradeça o que você tem, pare de sonhar com o impossível e não chateie. Sua cor é o marrom.
Touro
Aquele seu plano envolvendo o bispo, o anão hermafrodita e o contrabando de alfajores do Uruguai  – você sabe do que eu estou falando – não daria certo. Deixe para a semana que vem, quando a Lua será propícia. Seu número de sorte é impar, maior que três e menor que 725. Não posso dizer mais nada.
Gêmeos
Simplifique a sua vida. Pare de pagar suas contas. Em vez da declaração de renda, mande um bilhete desaforado para a Receita Federal. Se reclamarem, dê risadas irônicas. Ande de chinelo de dedo com meias e lixe-se para os comentários. Você comanda o seu próprio destino. Mas muito cuidado nos cruzamentos, porque pode vir outro louco.
Câncer
Evite alho-poró e pessoas chamadas Itamar, Fulvio Luiz ou Dalva Maria, principalmente à noite. Vênus entrou na casa de Netuno, o que significa que suas finanças e sua vida sexual podem se deteriorar rapidamente – tudo dependerá do que acontecer lá dentro.
Leão
Você é uma pessoa decidida, voluntariosa, opiniática e, francamente, insuportável. Está num período de grandes realizações, mas não deve esquecer que aqueles em que você pisou para subir mal podem esperar para segurar o seu pé na descida. Na vida sentimental, cuide para não arruinar romances com esse seu hábito de responder “Ah é, é?” a cada declaração de amor. 
Virgem
Não quero estragar seu dia, mas... Só vou dizer o seguinte: não saia da cama hoje. Se já se levantou e está lendo isto em outro lugar, volte para a cama imediatamente! Amanhã tudo voltará ao normal. A não ser que... Não, não. Tudo voltará ao normal...
Libra
Não esqueça de checar o prazo de validade de tudo, inclusive das pessoas com quem entrar em contato. (Muita gente que já ultrapassou o prazo continua, por assim dizer, nas prateleiras.) Você encontrará alguém que lhe transmitirá uma inquietação filosófica: “Como saber se a luz da geladeira apaga mesmo quando a gente fecha a porta?”. Afaste-se rapidamente.
Escorpião
O alinhamento dos astros favorece cruzeiros em navios de luxo, romances de bordo e visitas a lugares exóticos, mas não garante que você não enjoará o tempo todo e pedirá para morrer.  Se se arriscar, lembre-se que seu número na roleta é o 17. Pode não dar nada, mas é seu.
Sagitário
Aquele alguém que você esperava encontrar há tantos anos e que mudaria sua vida hoje estará dobrando uma esquina e esbarrando em você, dizendo “Não enxerga onde anda, não?” com irritação e seguindo adiante, porque seu signo é outro e sua previsão para hoje é completamente diferente.
Capricórnio
Parabéns. Seu futuro está assegurado. Você mesmo decidirá quanto ganha, terá prestigio, influência, mordomias... Mas primeiro terá que se candidatar e ser eleito. 
Aquário
Abra-se para a vida, busque o que há de mais puro e autêntico do seu âmago e grite bem alto para os ventos: “Eu sou eu! Eu sou eu! Ou um fac-símile razoável!”. Abrace as contradições do mundo e declare seu amor por tudo que existe, seja animal, vegetal ou mineral, com a possível exceção do Ahmadinejad. Cante a beleza, cante a paixão e a Natureza, a qualquer hora do dia ou da noite. Só prepare-se para o protesto dos vizinhos.
Peixes
Estranhamente, não há nada previsto nos astros para os de Peixes, hoje. Talvez seja apenas um problema técnico.

Algumas pessoas gostam de dizer para si mesmas que é apenas frívola distração, que acompanham o horóscopo, mas não se importam. Comigo dá-se o contrário: não acompanho, e me importo. Fiquei sabendo, inteiramente arrasado, que não sou mais de Libra, e sim de outro signo. Alertado para essa chateação, Quiroga (o nosso Quiroga, inimitável), repreendeu severamente os cientistas, recusando-se a comentar o assunto.

Isso de horóscopo, sei lá, irmãozinho, que chatura! 

sábado, 12 de março de 2011

Acaso e misticismo


Lamento, mas parece que somente o Hélio escreve coisas inteligentes na imprensa pátria. Coluna após coluna ele filtra o que de melhor é escrito lá fora, traduzindo tudo com um toque pessoal de inteligência e erudição. No texto abaixo ele adverte sobre o papel do acaso em nossas vidas, ilustrando como o misticismo nasce de nossa recusa em compreende-lo corretamente. Apreciemos:

Sempre que eu escrevo sobre religião, como foi o caso na coluna passada, passada, sou invariavelmente assaltado com argumentos do tipo "É preciso que haja um Criador, pois a chance de a vida ter surgido por acaso na Terra é a mesma da de um vendaval varrendo um depósito de lixo fabricar um Boeing 747 a partir dos materiais lá disponíveis".

Admito que a analogia é divertida, mas pouco exata. Ela foi criada por um respeitável astrônomo britânico, sir Fred Hoyle, para defender a hipótese da panspermia, isto é, de que as moléculas que deram origem à vida surgiram no espaço e foram trazidas à Terra por cometas. Sir Fred, que se notabilizou por ser o cientista "do contra" (além da evolução química, opôs-se, entre outras coisas, ao Big Bang), acabou se tornando, por razões óbvias, o herói da turma do design inteligente. É uma pena, porque isso obscurece sua importante contribuição para a nucleossíntese estelar (mais especificamente, o surgimento dos átomos de carbono no núcleo das estrelas).

A ideia básica de Hoyle é que a probabilidade de se obter o conjunto de enzimas para a mais simples das células é de uma em 1040000. Como o número de átomos existentes no úniverso é estimado em "apenas" 1080, o astrônomo concluiu que mesmo um Universo repleto de sopa primordial teria dado pouca chance para processos evolutivos, daí a necessidade de um processo guiado. Apesar de tudo, Hoyle nunca chegou a defender a existência de um Criador. Foi até apelidado de "o ateu favorável ao design inteligente".


Há pelo menos um erro fatal no argumento, a que os biólogos moleculares chamam de falácia de Hoyle. O autor faz suas contas imaginando a probabilidade de uma primeira sequência chegar ao produto final num único passo. Só que nenhum biólogo ousa afirmar que sistemas complexos surgem num único passo. Mesmo quando se considera a origem da vida, é preciso levar em conta os passos intermediários que possam ter sido de alguma valia para a vida pré-celular do organismo. Ignorar isso leva a subestimar grosseiramente a probabilidade do processo.

Subjaz ao erro de Hoyle uma incompreensão fundamental sobre o papel do acaso na evolução. Embora mutações nos seres vivos de fato ocorram aleatoriamente, a seleção subsequente --que conserva o que é útil e despreza o que não o é-- nada tem a ver com acaso. Ela é, se quisermos, o avesso do acaso. Trata-se, na verdade, de um dos poucos processos naturais que conseguem simular o trabalho de projetistas. Só que funciona ao contrário. Ao preservar traços mesmo que milimétricos de utilidade e descartar todas as mutações que não servem para nada (a maioria delas é neutra ou resulta em cânceres, é oportuno lembrar), a seleção consegue, ao longo de inúmeras gerações, produzir estruturas que passam por entidades concebidas por uma inteligência.

Acho que vale a pena agora darmos uma guinada psicológica e tentar entender melhor por que as pessoas compreendem tão mal o acaso. Não parece exagero afirmar que já nascemos com preconceito contra ele. Entre os vieses fundamentais de nosso cérebro, aos quais já aludi algumas vezes neste espaço, está a obsessão pelo controle.

Nós, seres humanos, adoramos estar no controle. E adoramos tanto que achamos que estamos no comando mesmo quando não estamos. Como explica Leonard Mlodinov em seu "The Drunkard's Walk: How Randomness Rules our Lives" (o andar do bêbado: como o acaso comanda nossas vidas), um dos experimentos favoritos dos psicólogos é botar um sujeito diante de luzes que piscam num padrão aleatório e mandá-lo apertar um botão que não faz nada. Em pouco tempo o cara vai dizer que controla as luzes.

Numa variante, colocam um grupo de indivíduos diante de um círculo luminoso onde as luzes piscam ao acaso e dizem que, se elas se concentrarem, farão com que as luzes pisquem num movimento horário. Logo, essas pessoas ficam surpresas achando que conseguiram, embora as luzes sigam piscando aleatoriamente. É até possível fazer com que dois times compitam simultaneamente, um para fazer com que as luzes sigam em movimento horário, e, outro, em anti-horário. O interessante na história é que não haverá perdedores. Os dois lados vão clamar vitória.

A busca por controle está tão impregnada em nossas mentes que produz efeitos inesperados sobre nossos corpos. Num experimento seminal, Ellen Langer dividiu pacientes idosos de asilos em dois grupos. O primeiro podia decidir como dispor as coisas em seus quartos e também pôde escolher uma planta e cuidar dela. O segundo tinha seus quartos arrumados por funcionários. Esses velhinhos também ganharam um planta, mas não puderam escolhê-la nem podiam regá-la, tarefa que cabia ao pessoal de apoio dos asilos. Algumas semanas depois, ambos os grupos foram submetidos a testes que mensuravam o bem-estar. Como o leitor já deve ter adivinhado, o conjuto que exercia controle sobre seu ambiente se saiu bem melhor.

O que ninguém esperava, porém, aconteceu 18 meses depois, quando Langer deu início a um estudo de "follow-up": o grupo que não dispunha de controle apresentou uma taxa de mortalidade de 30%, contra 15% dos que regavam suas próprias plantas.

Outros experimentos de Langer mostraram que a necessidade de sentir-se no controle afeta nossa percepção de eventos aleatórios. Num deles, voluntários preferiram consistentemente jogar contra um adversário que aparentava nervosismo a um que parecia calmo, mesmo sendo uma disputa de cara ou coroa, em que o resultado é determinado exclusivamente pelo acaso, e nada tem a ver com o estado emocional do jogador.

Meu palpite é que esse amor pelo controle, que tem como reverso uma certa fobia do acaso, está também na origem das religiões. Do vodu e dos cultos animistas às rezas, a religião busca transmitir a sensação de que alguém controla o curso dos acontecimentos. Mais do que isso, deixa uma janela para nós mesmos atuarmos. Implorar um favor a um ser onipotente já é tomar algum tipo de atitude, o que é mais do que limitar-se reconhecer o grande papel que o acaso tem sobre nossas existências.

E, como o livro de Mlodinov explora muito bem, esse papel é muito, muito maior do que gostamos de acreditar. É claro que também há espaço para o talento e a determinação, mas, mesmo assim, fatores aleatórios seguem com enorme influência.

No fundo, a conta é simples. Como diz Mlodinov, "se os eventos são aleatórios, nós não estamos no controle, e, se estamos no controle, eles não são aleatórios". Esse choque fundamental é uma das principais razões por que confundimos habilidade com sorte e ações sem sentido com controle. É também uma das razões por que muitos de nós acreditam em deuses e ficam de cabelo em pé com a simples sugestão de que a vida (e a nossa existência e a de todos os que amamos) resulte do encontro inopinado de moléculas de carbono com mais meia dúzia de produtos químicos baratos.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Religião

Hélio Schwartsman escreve, mais uma vez, sobre religião nas escolas, e mais uma vez sinto que é dever meu compartilhar suas opiniões.

"O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta a professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!"
A cena, que teve lugar numa escola pública de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, abre a reportagem de Angela Pinho sobre o ensino religioso no Brasil, publicada no último domingo na Folha. É um retrato perfeito da encrenca em que essa disciplina, que vem crescendo e hoje abarca mais ou menos a metade das escolas do país, nos lança.

Se as historietas bíblicas são reais, como quer a professora, então nós temos vários problemas. Procedamos por ramos do saber, a começar da física. De acordo, com Josué 10:12, Deus parou o Sol para que os israelitas pudessem massacrar os amorreus. Mesmo que eu não duvidasse da onipotência do Senhor, pelo que sabemos hoje de mecânica, nada na Terra sobreviveria a uma súbita interrupção de seu movimento de rotação. Em quem o aluno deve acreditar, no professor de religião ou no de ciência?

A física não o comoveu? Que tal a geologia? Pela Bíblia, a Terra tem cerca de 6.000 anos --5.771, a confiar nas contas dos rabinos. Pela geologia, são 4,5 bilhões. É difícil, para não dizer impossível, conciliar a literalidade das Escrituras com a existência de fósseis com idades substancialmente maiores que os seis milênios. Do lado de qual professor o aluno deve perfilar-se?

Talvez o problema esteja nas ciências "duras". Passemos às humanidades. A Bíblia, como todo mundo sabe ou deveria saber, é a fonte da moral, e os ensinamentos que ela traz nessa área são incontestáveis. Será? Em várias passagens, o "bom livro" autoriza ou mesmo manda fazer coisas que hoje consideraríamos horríveis, como vender nossas filhas como escravas (Êxodo 21:7) e assassinar parentes que abracem outras religiões (Deuteronômio 13:7). Se julgamos que a ética se aprende através de exemplos livrescos, sugiro trocar as Escrituras pelo mais benigno Marquês de Sade.

OK. Alguém pode argumentar que essa professora é uma exceção. Afinal, ela parece estar sustentando a inerrância da Bíblia, conceito que, no Brasil, é defendido por poucas religiões, notadamente adventistas e testemunhas de Jeová. Para as demais, as Escrituras não precisam e nem podem ser tomadas ao pé da letra. Admito que essa mudança de discurso nos livra de algumas das dificuldades mais vexatórias --já não precisamos conciliar o criacionismo da Terra jovem com as aulas de ciência--, mas nem de longe acaba com elas.

Como já expliquei numa coluna antiga, embora seja em teoria possível juntar uma teologia um bocadinho mais sofisticada com a seleção natural neodarwinista, essa conciliação acaba resultando num Deus menos atuante, que cria as leis do universo e se retira. Ocorre que esse é o Deus de Newton e de Leibniz, mas não o das pessoas que vão a cultos. Para elas, um Deus que não ouve preces e não interfere nos destinos dos humanos é inútil. E esse Deus que elas querem --e que os sacerdotes pretendem colocar nas aulas de religião-- é, pelo menos no plano psicológico, incompatível com a ciência contemporânea que deveria ser ensinada nas escolas.

Não estou evidentemente sugerindo que as pessoas devam rifar Deus para ficar com a ciência. Essa é a minha opção, mas não acho que deva impô-la a ninguém. O simples fato de uns 90% da humanidade manifestar preferências religiosas é um bom indício de que essa é uma característica da espécie, como a tendência a gostar de música ou aquela quedinha por substâncias psicoativas. A verdade é que o ser humano tem algo de esquizofrênico. Só conseguimos conchavar crenças religiosas, que de algum modo acabam apelando ao impossível ou improvável, com o rigor lógico exigido pelo método científico, porque nosso cérebro está dividido em módulos. "Grosso modo", quando a parte responsável pelo pensamento lógico está ativa, inibe a área da religião, e vice-versa. Com esse mecanismo, as contradições, quando não passam despercebidas, tornam-se digeríveis.

Até para facilitar esse processo, não convém que religião e ciência sejam ensinadas no mesmo espaço. Para que a criançada aprenda desde cedo a distinguir o discurso do "lógos" (científico) do do "mythos" (religioso), é melhor que a escola trate apenas da ciência e que a religião fique a cargo dos templos.

Cuidado, não estou afirmando que não seja possível estudar a religião com ferramentas científicas. Em princípio, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a neurociência estão aí para isso. Mas convém lembrar que estamos falando aqui de crianças de 6 a 15 anos, muitas das quais mal conseguem aprender português e as operações aritméticas básicas. Não me parece que a abordagem científica da religião deva ocupar um lugar muito alto na lista de prioridades. De resto, duvido que o lobby que advoga pelo ensino religioso esteja ansioso para ver a fé submetida a exame crítico.

Para além da cabeça da garotada, o ensino religioso na rede oficial também gera uma série de problemas institucionais. Como eu escrevi em texto que acompanhou a reportagem principal, a existência dessa disciplina em escolas públicas fere a separação entre Estado e igreja. Pelo menos em teoria, o Brasil é um Estado laico. Não há religião oficial e o artigo 19 da Constituição proíbe expressamente o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. É claro que a teoria soçobra antes mesmo de chegarmos ao artigo 19. O próprio preâmbulo da Carta invoca a "proteção de Deus", e o artigo 210 prevê o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.

Vale aqui observar que a única Constituição verdadeiramente laica que tivemos foi a de 1891, que rompeu com a Igreja Católica e eliminou quase todos os seus privilégios. As que a sucederam reintroduziram o ensino religioso.
Embora doutrinadores gostem de dizer que não há contradição entre os artigos 19 e 210, é forçoso reconhecer que colocá-los lado a lado gera pelo menos um mal-estar. Não é o único. A diferença é que, ao contrário de outros estrépitos constitucionais, que conseguem passar relativamente despercebidos, esse está produzindo consequências.
Por considerar que o Estado não pode regular matéria religiosa sem romper sua neutralidade diante delas (que caracteriza o laicismo), o CNE (Conselho Nacional de Educação) optou por não fixar parâmetros curriculares nacionais para a disciplina. A decisão é institucionalmente correta (e constitui uma prova indireta do erro que foi colocar o ensino religioso na escola pública), mas gerou um deus nos acuda, onde cada Estado definiu ao sabor da conjuntura política local como a matéria seria ministrada.

As pesquisadoras Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, em "Laicidade e Ensino Religioso no Brasil", traçam um panorama desse pequeno caos.
Pelo que elas puderam levantar, Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro optaram por um sistema confessional, que não se distingue da educação religiosa oferecida em escolas ligadas a igrejas. Não é preciso PhD em Direito para constatar que esse tipo de ensino afronta o dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que veda o proselitismo no ensino religioso.

Os demais Estados menos São Paulo escolheram o modo interconfessional, no qual as religiões hegemônicas se unem contra as mais fracas e contra ateus e agnósticos para definir um núcleo de valores a ser ensinado aos alunos. Tampouco é um exemplo de defesa dos direitos das minorias.

Apenas São Paulo fez uma leitura um pouco mais crítica dos mandamentos constitucionais e se definiu pelo ensino não confessional. Pelo menos no papel, aqui as crianças têm aulas de história das religiões, no que é provavelmente a única forma de juntar sem produzir muitas fagulhas o ensino religioso com o princípio da separação entre Estado e religião.

Resta apenas responder porque a laicidade é assim tão importante. O problema com as religiões reveladas é que elas trazem absolutos morais. Se a lei foi baixada pelo Altíssimo, apenas querer discuti-la já representaria uma segunda ofensa contra o Criador. E utilizar absolutos na política --religiosos ou ideológicos-- é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos. O remédio contra isso, como já intuíram no século 18 os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, é a separação Estado-igreja. Ela facilita o advento da política como arte da negociação e, mais importante, favorece a noção de que minorias têm direitos que devem ser protegidos mesmo contra a maioria. Aqui, paradoxalmente, o laicismo se torna a principal força a proteger as religiões umas das outras.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Fiuza

Guilherme Fiuza, na revista Época:
A disseminação da verdade petista vai muito bem, obrigado. Adolescentes e jovens voltam da escola e da universidade explicando como foi que Lula reinseriu o Brasil no mundo. Se você diz a eles que num dado momento, depois de Cristo e antes de Lula, o país tirou sua moeda do lixo, deixou de rasgar contratos e saiu do anedotário internacional, eles te olham atravessado. Não foi isso que o professor bonzinho disse a eles. O professor é legal, você é reacionário.