Verão de 2004. Cheguei a Buenos Aires numa ensolarada tarde e, antes mesmo de instalar-me no hotel, apressei-me em comprar passagem para a Patagônia.
El Calafate é uma cidadezinha às margens do lago Argentino (o maior da Argentina), onde se chega após 3 horas de vôo rumo ao sul. Na chegada, o ar seco, o aspecto desolador da estepe patagônica impressionam.
Do aeroporto para o hotel, vê-se a vegetação amarela, típica das bordas dessa cordilheira que corta a América do Sul, e um lago de águas verdes. Na hospedagem, fui apresentado a algumas moças, de vários países. Eram inglesas, australianas, francesas e italianas, que abundavam. Uma festa feminina congregando nações naquele lugar remoto.
Se havia homens? Não me recordo. Devia haver, por certo.
O fato é que, apresentado às moças, relutava em crer que, daí a pouco, iríamos pra cama. Talvez não devesse, mas vou contar essa vantagem. Tive o privilégio de dormir com as mais belas moças que já deram a graça naquela região. Australianas e inglesas se destacaram prontamente, mas as francesas e italianas não deixaram a desejar. Nenhuma se recusou a dormir comigo, confidenciou-me a moça do livro de registro de hóspedes.
O leitor pode não ter idéia do que é dormir com uma australiana, tendo uma inglesa ao seu lado. Menos ainda, suponho, se acrescentarmos uma francesa, por cima. Podem não me crer, mas foi uma coisa linda, muito íntima.
Imagino que o cavalheiro leitor não tenha noção do que é ter duas beldades te exigindo atenção, e uma terceira ali, em cima de você, ronronando, suspirando a noite inteirinha, em movimentos ora suaves, ora bruscos, mas sempre gentis. A noite transcorre em infinito acerto, rumo à felicidade plena.
Os gritinhos, os gemidos, às vezes mais intensos, às vezes de pura suavidade... Foram momentos de carinho, que se alternaram com abordagens mais ousadas. Tudo na australiana foi especial; não houve quem impedisse a francesa de se entregar a êxtases insanos, numa escalada de tirar o fôlego, até o arrebatamento triunfante.
Em outra noite, com a australiana Melanie por cima e uma inglesa coadjuvando, ao meu lado, compartimos emoções com Marzia, que também se inscrevera para dormir comigo. É um empreendimento difícil, às vezes arriscado, mas que vale a pena, caro leitor. Afirmo que não há coisa melhor a fazer na vida. Você corre o risco de desagradar uma, de ser acusado de só se importar com a que está em cima, por exemplo. Não é verdade. O fato é que em nenhum momento descurei das moças que ficaram ao meu lado, naquele gostoso sistema de rodízio, sempre cuidando que elas recebessem igual dose de atenção.
Há quem possa criticar este relato, sugerindo um excesso de criatividade. Uma objeção possível são as copiosas referências a essas moças que ficavam por cima. Por mais otimistas que sejamos, diriam, é difícil imaginar todas essas mocinhas por cima do cavalheiro a noite inteira.
Amigo leitor. Coloque-se no meu lugar. Que poderia eu fazer se era justamente ali em cima, e em nenhum outro lugar, que as mocinhas queriam passar a noite? Não foi eu quem pediu. De bom grado aceitaria a companhia delas ao meu lado. Nada podia fazer se elas desdenhavam a caretice, refestelando-se em tão acrobática posição. E digo mais: às vezes, duas moças ficavam por cima, por mais improvável que pareça. Não havia jeito de fazê-las descer, de recobrarem a serenidade. Alertei para o inusitado da situação; tentei fazê-las desistir de tão formidável empreendimento.
Em vão.
Se bem que eu talvez não tenha me esforçado tanto assim. Não quis insistir, contrariando mocinhas adultas e independentes que, além do mais, pertenciam a culturas mais evoluídas que a nossa.
Sem querer ostentar, lembro que, no universo, não há “em cima”, nem “embaixo”. Essas são categorias anteriores à demonstração da relatividade geral, de Einstein. Daí o discreto apoio à conduta dessas mocinhas, desbravadoras.
Havia uma inglesa, surpreendentemente morena, de intensos olhos, imensos, gulosos. Olhos que iam me comer todinho. Como eu gostaria de ter sido comido por aquela inglesa de pezinhos queimados. Mas não fomos para a cama. Não aconteceu, e ela terminou indo embora. Uma lástima.
Mas tive a minha vez com uma inglesa em Calafate. Uma simpatia aquela moça, de sorriso simples mas eficiente. Olhos barbaramente azuis, cabelos longos e, previsivelmente, louros. Mal nos falamos e já fomos pra cama, na noite da minha chegada. Sobre essa noite falarei mais adiante, em detalhes que tento esquecer.
A mesma avareza do destino em relação às três japonesas que chegaram no meu penúltimo dia em Calafate. Eu provavelmente não teria resistido muito tempo na mão daquelas três nipônicas insaciáveis.
Pois essas chicas, que me escreveram o nome em três versões de japonês e uma de coreano, respondiam a todas as perguntas em coro, afinadas, como só acontece em filmes de gueixas. Falavam português, o que tirou todo o encanto da conversação. Às tantas, revelaram conhecer Bonito, o que explicou a sensação de que eu já conhecia uma delas.
Nos encontráramos, alguns dias antes, no Abismo Anhumas, uma caverna com um lago em seu interior, de rara beleza.
Ficamos eu, as três japonesas, dois italianos e uma australiana conversando fiado até madrugada. Uma segunda australiana havia se retirado, provavelmente porque estava com o namorado a tiracolo.
Depois fomos para a cama, mas em quartos separados. Naquela noite, coube-me dormir com outra australiana. Simpática, risonha, creio que nos entendemos muito bem, já que não falo uma palavra em inglês, e ela desconhece espanhol e português com igual proficiência.
Em minhas conversas com as australianas e inglesas, experimentei alguns dos mais profundos, sinceros e acalorados diálogos que já travei, confortados em minha vasta ignorância do inglês, e do inalterável desconhecimento delas do português.
Creio que não atinamos uma palavra do que um disse ao outro. Descabelei-me de tanto gesticular, falar. Em vão. Em represália, recusei-me a entender cada uma das palavras que me foram dirigidas.
Como não entendesse o caudal de inglês fluente delas, arrisquei uma distribuição o mais aleatória possível de yes e no nas respostas. Os resultados foram embaraçosos, como quando perguntaram se eu escreveria sobre elas. Calhou o puro azar um no, o que as desapontou sobremodo. As tentativas de corrigir o erro falharam, previsivelmente.
– Australia? I like Australia, arrisquei, com insensata sinceridade. – Yeeeeaah, I like toooooooo, Melanie respondeu, fascinante. Guardo na memória os achados, as construções babélicas daquelas conversas, povoadas de mistérios indecifráveis.
Em Calafate, o vento não é amigo como em outros países. Lança-se em rajadas de 100, 150 km/h. Os motoqueiros são constantemente derrubados; viajam inclinados pelas estradas, em eterna curva, uma humilhação. Já as cerejas, fresquinhas, dão a melhor notícia das montanhas.
Com todas essas curiosidades sobre minha estada na Patagônia, é hora de acrescentar uma informação, uma coisinha de nada que, a rigor, nem merecia ser mencionada: a hospedagem retratada é um albergue, com homens e mulheres alojados no mesmo quarto; cada quarto tem quatro camas, distribuídas em dois beliches.
Se é verdade que todas as noites eu ia pra cama com algumas mocinhas, não menos verdade que cada um devia se contentar com a sua caminha, sem barulho nem bagunça. Como chegávamos tarde, mal nos falávamos e íamos direto pra cama. Bem entendido: cada um na sua cama.
Devo confessar, a essa altura, uma certa frustração com essas “noitadas”. A circunstância de sermos quatro em cada quarto, cada um na sua parte do beliche, não ajudou muito. Além do mais, no caso da inglesinha com quem dormi logo na primeira noite, esqueci-me de contar que ela dormiu no beliche ao lado, seu marido na cama que lhe ficava acima e um amigo deles na cama acima da minha. Reconhecidamente, uma situação pouco glamourosa.
Sem falar que, apagadas as luzes, coisas estranhas aconteceram. Na escuridão, sussurros, vozes insistentes. A loira, ao meu lado – nossas camas ficavam lado a lado – provocava o marido, na cama de cima. A temperatura subiu. Deve ser dito que Chloe estava em viagem de lua-de-mel com Chris. O outro Chris, amigo de longa data do marido, apenas fazia companhia ao casal. Desagradou-me esse evidente excesso de chrises.
Chris, o colega na cama de cima, roncava. Chris, o marido, tentava ser o mais enérgico que a situação permitia:
– Stop, Chloe, stop. Stopped, stopped!!
Mas ela não parava. Não tive coragem de olhar o que ela fazia ao pobre Chris. Sou ateu, mas rezo três ave-maria e dois pai-nosso toda vez que penso no que a malvada Chloe estava fazendo ao desvalido Chris.
Depois dessa experiência terrificante, a sorte me sorriu, segundo me pareceu. Reservei lugar num albergue 5 estrelas em El Chaltén, cidadezinha de onde saem as caminhadas para o cerro Fitz Roy. Fui informado de que dormiria com três mulheres. Minha conhecida virilidade me garantia uma boa performance nessa situação. Fiquei tranqüilo. O fato de serem três senhoras idosas e de militar feiúra não deve ser visto como desdouro dessa minha aventura: dormi como uma pedra, e não me atrevi a sonhar, para não correr riscos.
Felizmente, as civis senhoras não me molestaram. Exceto que, apagadas as luzes (lembro que não existem gestos triviais num quarto cheio de mulheres e um homem) não passou despercebida uma indevida expansão do ar, que se tornou irrespirável, por instantes.
Não digo que as boas senhoras o envenenaram. Digo apenas que, naquele momento, o desastrado gesto de riscar um fósforo teria levado o albergue, senão toda a montanha pelos ares.
Outro ponto que merece esclarecimento, para não induzir o leitor a erro, é que nem sempre sobraram mocinhas lindas para dormir no meu quarto. Certa noite, calhou um alemão. Não vou tentar descrevê-lo. Basta dizer que, numa das conversas de início de noite, quando a angelical Cindy fez festa para uma menininha de 3 anos de idade, ela se pôs a chorar, inconsolável: vinha chegando o alemão, e seu vulto, atrás de Cindy, me aterrorizou também.
Por sorte, só uma noite dividi o mesmo quarto com a criatura. Fui promovido para o quarto de Melanie, a australiana, a essa altura também equipado com uma francesa, impetuosa, e uma suíça, calma. Na manhã seguinte, ainda sonolento, quase bati de frente com Mr. Frankenstein, no corredor. Ele observou, com seu inglês do fundo das dificuldades:
– You change... room?
– também sou filho de Deus, né, mané! – respondi.
“Mr. Frank” tinha chegado de bicicleta à Patagônia. Pelas peças quebradas e seu ar desolado, imagino quantos merecidos tombos não deve ter colecionado.
A viagem foi cheia de aventuras. Uma delas foi cruzar o lago Argentino num catamarã. A travessia começou modorrenta, e critiquei o excessivo rigor da tripulação que, ao contrário das outras, não nos deixou sair à cobertura (o barco era completamente fechado). Logo depois, viu-se o motivo: o barco começou a escalar ondas de 3, 4 metros de altura, apontando a proa ora para o céu, ora para o fundo do lago. Batia com estrondo contra as vagas, oscilando de forma cinematográfica entre cristas e vales de água escura.
Nunca senti tanto medo na vida. As pessoas urravam no convés. Algumas passaram mal, outras petrificaram de pavor. A tripulação caminhava (quando podia) entre os passageiros, no que pareceu-me um recenseamento prévio dos corpos. Algumas moças, sentadas nas poltronas da frente, gritavam e riam, histéricas. Foi emocionante. Pena que durou só 2 horas.
Na volta, apelei para o Dramin, que tinha acabado. O farmacêutico, pelo princípio ativo, receitou-me Dramanin, seu nome comercial na Argentina. Junto com um licor de calafate, prontamente ofertado por Chloe (a malvada), teve um efeito interessante.
Como dito, era verão, e o sol se punha às 11 da noite, retornando por volta das 6 horas. São dias memoráveis, cheios de montanhas, geleiras e desertos: longuíssimos. A cidade é pequena, mas aconchegante. La Vaca Atada, restaurante onde eu quase sempre comia, é simpático, bom e barato. O cordeiro patagônico é prato obrigatório, eficaz contra fomes desmedidas. Sempre que via uma vaca atada a uma corda na calçada, entrava sem medo: o restaurante servia. Coisas como uma casuela de mariscos, quente como se concentrasse as iras de todos os cozinheiros do mundo e servida com uma pimenta especial me fizeram perder momentaneamente o contato com a realidade.
Se tudo tem um fim, com um sobrevôo às geleiras terminaram minhas aventuras na Patagônia. Melanie sentou-se à janela. Tirou fotos dos cumes e do gelo azul, apesar das janelas riscadas do velho Boeing 737 das Aerolíneas Argentinas. Ela desembarcou em Bariloche, na metade do caminho. Buenos Aires me aguardava, impaciente.
Dia desses, pesquisando o bolso de um casaco azul, deparei com um broche. Após tantos meses hibernando, pareceu-me mais bonito esse ursinho-de-bolso chamado coala, com seu dourado das minas de ouro da Austrália. Melanie – a gentil exploradora de minas – metade da circunferência da Terra distante, me veio à memória.
II.
A Argentina, apesar do esforço hercúleo que vem fazendo nas últimas décadas, está muito atrás do Brasil em matéria de produção e manutenção da miséria.
Francamente, eles têm muito o que aprender conosco. Um país como aquele, outrora chamado “a Inglaterra da América do Sul” não conseguiria, de jeito nenhum, se transformar num país pobre, cheio de miseráveis, com crianças pedindo esmolas nas ruas, em tão pouco tempo. Isto simplesmente não estava ao alcance nem da afamada elite sul-americana.
Mas ela se esforçou.
A culpa não é do povo argentino. Muito pelo contrário: semelhante ao povo brasileiro, é gente boníssima, empreendedora, alegre, confiante, inteligente. O problema é outro, como qualquer brasileiro sabe, de cor e salteado.
Buenos Aires me pareceu generosa, industriosa e confiante, apesar do vendaval econômico dos últimos três anos. Lembro-me que choveu horas e horas no dia do meu retorno, desde a madrugada. Indiferente ao aguaceiro, a cidade estava tranqüila, e não consegui descobrir um único “ponto de lentidão” no trânsito, um único evento cancelado. O que denunciava a chuva excessiva era a presença de guarda-chuvas na rua. Quanta semelhança com São Paulo, não?
A mãe e a irmã de Jorge Luis Borges foram presas, com outras senhoras, por cantarem o hino nacional na calle Florida. Durante um mês, a mãe permaneceu em prisão domiciliar, enquanto Norah foi para o cárcere de prostitutas, onde ensinou canções francesas e desenho. Era 1948.
Meu passeio pela calle Florida foi menos dramático. Limitei-me a comprar as obras completas de Borges na livraria El Ateneo, e a visitar algumas lojas e um Shopping Center.
Perón não gostava de escritores famosos e independentes. Menos ainda de escritores com mania de assinar qualquer coisa que os amigos lhe levassem, inclusive manifestos contra a ditadura. Bom tiranete, não perdoava qualquer laivo de consciência crítica. Élio Gaspari, em sua obra A Ditadura Derrotada, brinda-nos com esse piedoso comentário:
“Perón tinha uma biografia de trapezista. Em 1916, quando era subtenente, os argentinos viviam com um renda per capita maior que a dos japoneses, 70% da canadense. Chegara ao poder em 1946, coroando um período de anarquia militar. Depuseram-no dez anos depois, numa crise em que bombardearam o palácio, metralharam a multidão (...).” Ele retornaria a Buenos Aires em 1972: “Aproximava-se da senilidade como senhor de um país cuja renda per capita caíra a menos da metade da japonesa, um quinto da canadense.”
Por ordem do ditador, de diretor da Biblioteca Nacional, foi Borges promovido a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais. Ele argumentou que sua experiência com animais era inteiramente literária. Responderam que não se cuidava de promoção. Pediu demissão, como calculado pelos gregórios.
Na esquina da diagonal Saenz Peña, onde se situa uma agência do Bank Boston, deparei com a Argentina contemporânea: as pesadas portas de ferro do banco foram cerradas às pressas, e nelas alguns homens e mulheres, todos com mais de sessenta anos, batiam vigorosamente com panelas e caçarolas. No metal escuro se liam frases como: devolvam nosso dinheiro – Presidente, pare de apoiar esses ladrões – fora ladrões americanos, entre outras.
Eram pessoas humildes, de roupa surrada, que pareciam acreditar na causa. Ali bem próximo, a menos de 15 metros, alguns atores atuavam no que parecia ser uma cena de novela da TV. Uma linda moça, de seios generosos, um cara, uma criança e um ator mais velho contracenavam, sem se importar com o forte panelaço, ao fundo.
As pessoas passavam. Argentinos, turistas, comerciantes, pedintes. Na calle Florida, com a Av. Saenz Peña, o casual, o político e a indiferença se abraçam, num país acossado por escolhas equívocas.
Saí dali e fui alcançado por uma loja de vinhos. 20 dólares depois, exibia duas garrafas de vinho argentino: um de Río Negro (província onde fica Calafate), outro de Mendonza. Este último estava delicioso, como profetizado pelo vendedor.
Em 1914, em conseqüência de uma cegueira quase total, o pai de Borges de aposenta e vai passar uma temporada com a família na Europa, onde naquela época os preços são menores que na Argentina. Ficariam até 1921. Daí a educação superior, os múltiplos idiomas, o genuíno cosmopolitismo de Borges.
Durante toda a década de 1990 a Argentina sustentou uma paridade artificial com o dólar, sem outro proveito que preços internos astronômicos e desindustrialização em massa, num processo coroado por um feriado bancário que durou semanas, confisco, panelaços e enfrentamentos nas ruas. Até quando será tolerado o charlatanismo nas economias latinoamericanas?
Fevereiro de 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário