Há quem tenha ressalvas à comida
australiana. Uns ignorantes (não fala com eles não, leitor). Me proponho comentá-la.
Aquele aglomerado parecia vencido, e como que esgotado seu potencial de reciclagens. Mas visitei outras cozinhas na Austrália. A mais impressionante delas, a indiana. Sentei-me à mesa, sozinho, enquanto à volta as pessoas comiam e conversavam. Antes do cardápio, o garçom, um indiano que antecipou gostar de música brasileira, confiou-me a guarda de uma enorme garrafa d’água. Inicialmente ofendido pelo despropósito de uma garrafa tão grande "O que esse sujeito está pensando?", olhei em volta e vi iguais caixas d'água em cada mesa, e pude mesmo ver que as pessoas delas se serviam.
Comecemos pelo aussie barbecue, de grande apelo popular. Lingüiças
industriais e cebolas. Um acompanhamento luxuoso, e excepcional, é um bocadinho
de carne. Não é fácil identificar qual corte, nem o tipo de animal (supondo que
o seja). De qualquer forma, é raro.
Esse “churrasco” explica parte dos 4,5 kg
perdidos em vinte dias na Austrália. Mas o que mais me agradou foi o modo de
preparo das carnes. Chega-se ao delírio com o doce de frango que eles servem,
geladinho, e com a carne de canguru mal passada, adoçada com o puro açúcar de Fiji.
Uma vez, não me lembra onde, deparei com
costeletas de porco impiedosamente adoçadas, num molho vermelho, acompanhadas
de farta guarnição de pepinos. Em outra, quiseram me convencer das qualidades
de um docinho de carneiro. Argumentei com a possibilidade do sal. “Seria
atroz”, indignaram-se os cozinheiros. Não alcancei entendessem que em alguns
países se usa essa substância nas carnes, e que a prática está registrada em
textos consagrados, como a Ilíada. Essa última informação os exasperou.
Sem embargo, penso não ser proibido comer,
uma ou duas vezes por ano (na falta de opção num raio de mil km) em casas de fast food. No meu caso, após perder uns cinco
quilinhos, fui a uma dessas encantadoras lojas. Escolhi um sanduíche com apelo
australiano. Trouxeram-no com pompa. O que eles chamam de carne processada é em
verdade um aglomerado de plástico, com um leve toque de açúcar. Os simpáticos
talos de alface, apelidados “salada”, estavam crocantes, e combinavam, de
alguma forma, com a geléia de morango que empolgava o pepino. As batatas da liberdade, geladas, e o
refrigerante de cola, morno, estavam saborosos. Tudo considerado, tinha-se a
impressão geral de estar comendo a tábua de passar roupas, com geléia de
morango.
Ignoro o valor nutricional das tábuas de
passar roupa, e dos móveis em geral, mas acredito em baixos teores de
colesterol, ao contrário do sanduíche. Não me oponho à ingestão de aglomerados
de plástico. Acho até que esse é o futuro da gastronomia, a considerarmos que
hoje muitos se orgulham de seus “cereais matinais”: sabugos de milho moídos,
com sabor tutti frutti.
Aquele aglomerado parecia vencido, e como que esgotado seu potencial de reciclagens. Mas visitei outras cozinhas na Austrália. A mais impressionante delas, a indiana. Sentei-me à mesa, sozinho, enquanto à volta as pessoas comiam e conversavam. Antes do cardápio, o garçom, um indiano que antecipou gostar de música brasileira, confiou-me a guarda de uma enorme garrafa d’água. Inicialmente ofendido pelo despropósito de uma garrafa tão grande "O que esse sujeito está pensando?", olhei em volta e vi iguais caixas d'água em cada mesa, e pude mesmo ver que as pessoas delas se serviam.
Superada essa crise, baixou o cardápio, com
nomes exóticos. Vi que poderia dar um basta na cozinha australiana, escolhendo
bem o prato. Ao cabo de uns minutinhos, como houvesse disputa entre os peixes,
as carnes e os frangos, sem falar dos arrozes e vegetais, folguei em pedir um
prato que fosse a somatória de tudo isso e um pouco mais. Um prato que reunisse
o melhor da cozinha indiana, um resumo. Entrementes, ordenei que da cozinha
subisse uma autêntica cerveja australiana, e lembro que me trouxeram a VB. Não
sabia o que fazer com o garrafão de água, e tive ganas de que fosse
adjudicado à cozinha. Deixou-o ficar.
A comida chegou, em menos de meia hora, em
sincronia quase perfeita com o final da VB. O prato era uma bandeja média, com nichos de vários tamanhos. Os
maiores acomodavam arrozes e vegetais. Havia uma bateria de pequenas cavidades,
onde se aninhavam as várias carnes, seus molhos e guarnições. Havia peixes,
crustáceos, carnes bovinas (ou assim espero) em várias apresentações e estilos,
e frango. Abundavam também as comidas não identificadas e a sobremesa, sabida a
batata doce.
Fui às carnes, já que de um arroz não se
espera muito, fora do Brasil. Primeira mordida, primeira fisgada. “Deve ser só
impressão”, pensei comigo. Segundo prato, nova fisgada, que se somou à primeira,
no ardor. “Ora ora, que malandro!” À medida que outros pratos foram sondados,
mamãe! Era como se incêndios estivessem sendo ampliados paulatinamente na boca.
O peixe, esse adorável e pacato prato, atiçava labaredas por toda a língua,
toda a boca. Era difícil acreditar que um inocente frango fosse capaz de
tamanha devastação nas papilas gustativas. O incêndio ganhava o corpo, e cabia
abrandá-lo, do jeito que desse. A cada porção, um vigoroso jato d’água, para
evitar o alastramento das labaredas. Os vegetais, tão macios e amigos, se
resolviam em chamas vermelhas e vivazes, gostosas de queimar neurônios. Pensei
nos extintores à base de carbono, mas vi que poderia ser mal interpretado pelos
convivas, que suportavam pacientemente suas provações.
Olhando com mais atenção, pude ver que de
cada rosto emanava uma expressão de sofrimento, como se uma grande luta
estivesse sendo travada, e perdida. A água, os lenços, o apressado abanar-se:
os sintomas eram da comida, ligeiramente picante. Os garçons se entreolhavam
com orgulho. A qualidade de cada prato é aferida pela quantidade e aspecto das
lágrimas. Lágrimas mornas e abundantes escorrendo pelo rosto eram sinal de boa
comida, e não é nada educado deixar de verter pelo menos alguns cristalinos
pingos. Um religioso à minha frente rezava baixinho, e eu quase podia ouvir a
prece: “Oh Deus, se pelo menos não houvesse tantos bandidos na cozinha
indiana... Abrandai-lhes, Glorioso, as necessidades de incendiar o mundo”. Aos
prantos, comecei a pensar em tudo que me ocorrera até ali, as muitas viagens,
os amigos que deixei em cada lugar e no Brasil, e enquanto pensava, um
camarãozinho atiçava-me labaredas, que já iam altas.
A carne vermelha requereu meio litro de água, as chamas lavrando no trato digestivo. Não sei quem disse que a cozinha baiana é apimentada. Pois ela parece papinha de nenê, perto da indiana. Lentamente, o salão foi se elevando espiritualmente, com pensamentos piedosos aflorando, testemunhados por lágrimas sinceras e comoventes. Foi nesse clima que deixei o restaurante, após duas garrafas d’água, arrependido de todos os pecados cometidos ou a cometer. Levei comigo algumas pedras de gelo, com que pretendia entreter as labaredas. Depois dessa experiência, ocorrida em Adelaide, só em Queenstown, um mês depois, reuni coragem de adentrar um desses restaurantes, tremendos.
A carne vermelha requereu meio litro de água, as chamas lavrando no trato digestivo. Não sei quem disse que a cozinha baiana é apimentada. Pois ela parece papinha de nenê, perto da indiana. Lentamente, o salão foi se elevando espiritualmente, com pensamentos piedosos aflorando, testemunhados por lágrimas sinceras e comoventes. Foi nesse clima que deixei o restaurante, após duas garrafas d’água, arrependido de todos os pecados cometidos ou a cometer. Levei comigo algumas pedras de gelo, com que pretendia entreter as labaredas. Depois dessa experiência, ocorrida em Adelaide, só em Queenstown, um mês depois, reuni coragem de adentrar um desses restaurantes, tremendos.
Não falei, ainda, da cozinha vietnamita. Na
George Street, não longe do Paddy's Market, em Sydney, concentram-se diversos
restaurantes asiáticos, tailandeses, chineses, japoneses. Entrei no que me
pareceu o mais simpático. A moça que me atendeu era bonita e vietnamita. Pedi
uma sopa que incluía frutos do mar, carnes, vegetais e macarrão. Antes da sopa,
eles serviram uma salada. Era vasta, com vegetais incomumente viçosos. O jasmim
interagia de maneiras totalmente insanas com as papilas. Ignoro se foi o jasmim
vietname, ou outro vegetal ainda mais exótico: alguma coisa subiu ao cérebro e
começou a inventar delícias proibidas.
Incorri, com Withman, numa sobrenatural
capacidade de emitir uma alvorada de mim mesmo, segundo sonhos. Jamais voltei a
experimentar semelhante câmbio dos móveis mentais. Não por falta de diligência,
mas é que, nas duas vezes que lá retornei (uma delas após dar a volta à
Austrália), não me serviram a abençoada salada. Num restaurante no mercado
municipal de Adelaide, chegou-me ao conhecimento a comida tailandesa, de muitas
sopas e carnes de vaca ou frango. Do restaurante 'Star of Siam', lembro
vagamente de alguns pratos, sem contudo distinguir seus sabores. Não cheguei a
provar a alta cozinha australiana, e tampouco a neozelandesa. Imagino que devem
ser maravilhosas, e de uma próxima vez prometo ser menos avaro. Um amigo
aconselhou-me escalopes de um molusco gigante, só encontrado na Austrália. Não
o localizei no cardápio do restaurante da Ópera de Sydney.
Abateu-me a saudade de meu restaurante vegetariano,
e do arroz com feijão, que são a marca do brasileiro, sua mais cativante
invenção. Ignoro se todos os exemplos de comidas e suas impressões aqui
relatadas são literais ou consentem alguma criatividade. o episódio da salada
vietamita é rigorosamente verdadeiro, como o é que perdi quase 5 quilos em 25
dias na Austrália. Talvez eu devesse comemorar. Campo Grande, fevereiro de
2005.
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