sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Impressões avulsas (quase diário)

Consta que os blogs são diários virtuais. Se for verdade, ofereço as notas que seguem, sem outra intenção que submeter a esforços a amizade do leitor. Impressões avulsas (do longínquo ano de 2001): a) Notícia literária. 1. Bons livros chegaram-me às mãos. Para citar alguns: duas versões da obra máxima de D. H. Lawrence: O Amante de Lady Chatterley, um incursão memorável ao erotismo do início do século XX; diversos contos mágicos do gênio Guimarães Rosa, entre os quais, A Terceira Margem do Rio e A Menina de Lá. Poesia Pura. Ainda, O Vermelho e o Negro, de Stendhal; Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens (magnífico). Leituras e releituras intensas de Machado de Assis e Jorge Luís Borges. 2. Borges é de uma loucura preciosa e risonha. Quanto ao Bruxo do Cosme Velho, impossível estimar nossa dívida para com esse mago das eternações. Teve ainda a continuidade do Ulisses, de Joyce, para sempre intérmino, e a impagável trinca Mark Twain, G. K. Chesterton, e Ítalo Calvino, cômicos irresponsáveis, maravilhosos e imprescindíveis. 3. Inúmeros contos de Franz Kafka, o gênio literário máximo do século passado, li e reli, entre os quais: Na Colônia Penal, o hilário A Sentença (hilário num sentido kafkiano, em que o cômico está contido no trágico), e Antes da Lei, o texto que abre o filme O Processo, versão Orson Welles, filme total. 4. Que dizer de Faulkner? O Som e a Fúria, e Santuário foram lidos em conjunto, para melhor apreciar a estranha prosa desse escritor. Foi também o ano da leitura do Werther, essa explosão de amor romântico do mestre Goethe. A extrema má impressão deixada pelo Fausto foi superada com essa obra. Penso que a tradução deve ter feito muito mal ao pobre Fausto. 5. Tem uma pá de outros livros lidos, mas já não me lembro, e não vou torturar minha biblioteca em busca de uma confissão. 6. Convém anotar (para satisfazer as almas inclinadas a contabilidades) alguns títulos e autores: Daniel C. Dennett (A Perigosa Idéia de Darwin e Tipos de Mentes), obras filosóficas no bom sentido da expressão. Devo-lhes muito. John R. Searle (Mente, Linguagem e Sociedade, outro filósofo da atualidade); Ana Arendt (As Origens do Totalitarismo, leitura intérmina, infelizmente); Clemente Nóbrega (Glorioso Acidente, repositório das grandes idéias contemporâneas); Robert Gilmore (Alice no País do Quantum, fábula bem-humorada sobre os paradoxos e perplexidades a que nos conduz a Mecânica Quântica); Michio Maku (Hiperespaço, uma prosa instigante sobre a natureza hiperdimensional do mundo. Desafia a imaginar um mundo com mais de quatro dimensões, a partir de um mundo igualmente fantástico, de apenas três dimensões); George Smoot e Keay Davidson (Dobras no Tempo); Brian Greene (O Universo Elegante); Geoffrey F. Miller (A Mente Seletiva, que apresenta a outra teoria de Darwin, conhecida como seleção sexual); John Maddox (O Que Falta Descobrir). Maddox é editor emérito da prestigiosa Nature. 7. Li, ainda, todos os volumes de S. Jay Gould que consegui derrubar de velhas prateleiras, talvez pra me livrar logo desse mala. São livros fragmentários, mas que apresentam conceitos interessantes, como o da neotenia humana, e nos dá uma aula sobre as médias de rebatidas no Baseball americano). Vou ser franco: depois de ler todos os livros de R. Dawkins, é até covardia ler outro autor sobre os mesmos assuntos. Dawkins aguarda releitura. 8. Dois outros livros precisam ser destacados: O Bico do Tentilhão, de Jonathan Weiner, descreve a evolução de tentilhões acontecendo, ao vivo e em cores, matematicamente mensurada, no arquipélago de Galápagos; trata-se de uma devastadora demonstração de como funciona a Teoria da Evolução. Uma grande injúria a certos dogmas religiosos. b) Filmes. Assisti a um caminhão de filmes em 2001. Mas o que importa mencionar são alguns diretores. Ingmar Bergman (Morangos Silvestres, Mary e Alexandre e outros); Woody Allen (O Testa de Ferro, Celebridades, Todos Dizem Eu Te Amo e outros); Orson Welles (autor das duas obras máximas do cinema: Cidadão Kane e O Processo); Akira Kurosawa (Dersu Uzala, Rapsódia em Agosto e outros); Stanley Kubrick (Laranja Mecânica, 2001, Nascido Para Matar e outros); Luis Buñel, Pedro Almodóvar, Robert Altman, e vários outros. Sim, o cinema nacional. c) Viagens. 1. Inaugurei o ano no balneário de Camboriú. Logo depois parti para a África do Sul, para uma visita de 15 dias. Nunca tinha posto os pés em hotéis tão luxuosos. Mas a viagem, como um todo, desapontou. A Cidade do Cabo é muito bonita, e guarda qualquer coisa de Rio de Janeiro (talvez o tema da montanha e do mar); tem uma vida cultural interessante (pelo menos aos olhos de um turista em primeira visita); inúmeras atrações, como a subida à Montanha da Mesa e o Cabo da Boa Esperança. Tudo bem bonito. A rota dos jardins também agrada, com suas cidadezinhas ao estilo inglês. As gargantas e vales que se vêem depois bem valem a viagem. Mas o Kruger Park e a Cidade Perdida, definitivamente, não impressionam. The Lost City (leia-se hotel Sun City) não passa de uma Las Vegas em miniatura e, no Kruger, o turista se farta de ver pequenos antílopes (dik diks, kudus), zebras de todas as estampas, muitas girafas, elefantes, alguns rinocerontes, mas nada de leões, leopardos, e mesmo búfalos. Minha idéia de África envolvia savanas selvagens, habitadas por felinos, manadas intermináveis de antílopes, paquidermes e outros pequenos animais, todos em feroz interação na luta pela vida. O que cheguei a ver foi um entediante desfile de animais, alguns aparecendo mais que outros. Ao chegar a São Paulo, tive ganas de sair em comitiva até o Simba Safári, a ver os big five, provisoriamente indisponíveis na África. 2. Jericoaquara. Chegamos a Jeri num pau-de-arara, como perfeitos retirantes. Pau-de-arara, no caso, era um caminhão de dois eixos, sem portas na cabina, com uma carroçaria de inesgotável altura, sem escadas para subir, repleta de bancos de madeira. Chegamos pela madrugada, lá pela uma da manhã, e embarcamos no caminhão, da maneira mais desconfortável possível. 3. Quando o caminhão ligou o motor, minha ilusão de cochilar mais um pouco se desfez: mesmo hoje, seu barulho ainda atormenta. Parece que o horrível veículo deixava os gases escapar diretamente do motor, sem um único estágio de escapamento, de modo que o barulho era nauseante. 4. Quando a estrada começou a colear na caatinga costeira sobre dunas cada vez mais altas, entrei a sentir a emoção da chegada a esse lugar. A escuridão era profunda, e o céu alardeava suas mais brilhantes estrelas. 5. Submetido aos feitiços da Alva, o sertão estava ali: o derramamento de estrelas, a relva contorcida, cabanas paupérrimas, e o pau-de-arara levando retirantes de todo o mundo, insensatos em seus projetos de paraíso. 6. Quando chegamos, alguns foram direto para a padaria; outros, como eu, derivaram vagarosamente para a cama, calma. Depois me disseram que o quente é a padaria, à uma e meia da manhã. No maior mico da viagem, perguntei a dois portugueses se, porventura, eles prestigiaram a padaria... 7. Jeri me pareceu a meca do pôr-do-sol. Num dos lados do vilarejo de pescadores, ergue-se majestosa duna de areias brancas, do alto da qual dá-se o espetáculo da união do astro com o mar, também afogueado no consumir de vasta tarde. Não me esqueço do esplendor agreste de Jeri, de suas glórias feitas de sol, mar, céu, e doces, absolutamente maravilhosos, de coco. 8. São Paulo. Finalmente a cidade me impressionou positivamente, após longo tempo de estranhamento. Eu, que a conhecia de passagem, sempre correndo de Guarulhos até o centro e vice-versa, fui conhecer facetas mais favoráveis desse aglomerado brasileiro. Tomei um ônibus para turistas na Barra Funda e fui conhecer – de graça! – os principais museus da cidade. 9. O que mais me agradou, de longe, foi a Pinacoteca do Estado. Pequeno, aconchegante, repleto de belas obras: um museu para quem gosta de arte. Não é um daqueles supermuseus europeus ou americanos: inimigos dos pés e muito inclinados a zombar de pobres turistas, como eu, com escasso tempo. A Pinacoteca, com sua despretensão e estilo, é o grande programa cultural de São Paulo. 10. Outra coisa chama a atenção em São Paulo: as pessoas. Impressiona a maneira de ser paulistana, parece que sempre profissional, freqüentemente cordial, sem dever nada a ninguém. E tem a fala. Rápida, concisa, uma urgência pouco contida de comunicar, elaborando a tendência de inserir um i no meio das palavras, logo depois de alguma vogal desavisada: um falar de quem incorporou a Itália à matriz luso-africana. Tá entendeindo? Ãrrãim. 11. O paulista, parece, é dono de sua cidade, de seu tempo: acostumou-se ao fenômeno da densidade humana, incorporou-o à sua personalidade e jeito. A grande “curtição” em São Paulo são as pessoas, a pizzaria, o shopping: elementos de uma cultura discutível mas existente. 12. Freqüentei teatros e shows todas as noites de minha estada, de uma semana. Assisti a Marisa Monte, Les Miserables, algumas comédias e outras tragédias. A peça de Victor Hugo me pareceu interessante, falada e cantada em português. Já a havia assistido em Nova Iorque, e a produção local não deixou a desejar à da Broadway. Os efeitos especiais eram diferentes, e as músicas soaram estranhas, como todo musical em português. 13. Quanto ao show de Marisa, a casa de espetáculo era tão grande, mas tão grande, que eu devo ter escutado as músicas com alguns minutos de atraso, exageros à parte. Mas juro que consegui enxergar que era ela mesma que estava no palco, e não sua irmã, por exemplo. Pelo menos me pareceu. 14. Natal e Fernando de Noronha: Natal foi um caso de amor para com uma cidade: seu calor vigoroso encontra temperos na brisa marítima. Conheci Natal na adolescência. Desde então me encanta essa cidade costeira, suas praias, suas dunas móveis, sua areia alva, o sol num trabalho sempre sério e competente. Na época eu era aficionado por aviões. Um apego a jatos militares, caças, aeronaves de espionagem, modelos aeronavais: uns mundos adolescentes, repletos de armas voadoras. Minha tentativa de ingressar na Academia da Força Aérea foi rechaçada, para grande contentamento da nação. 15. Natal era o mar, o imenso, silente e misterioso mar, com sua túnica profunda, cingida por navios intrépidos, e a areia do entorno costeiro, alegre. Quando vi pela primeira vez a praia de Ponta Negra, em 1986, foi um transporte de êxtase. Nunca havia visto semelhante concerto entre terra e mar, céu e terra, gente e natureza. Desde então tenho visto muita praia, muita montanha, inúmeros rios e mares. Mas aquela emoção, autêntica em um adolescente, permaneceu. 16. O sol de Natal é recomendado para pessoas melancólicas, por sua generosa alegria. O ar dessa cidade deve ser sorvido a bons haustos, acompanhando uma água de coco, numa tarde preguiçosa de domingo, enquanto o mar é singrado por navios ciganos. 17. Quanto à Esmeralda do Atlântico, alcunha de Fernando de Noronha, era sonho antigo conhecê-la. E a realidade não ficou devendo ao sonho. 18. Cheguei num turboélice barulhento. Do alto, um choque de beleza. Noronha não é qualquer lugar. Se parece com a sucursal do paraíso na terra, lugar para se testar os limites dos sonhos, exultar. Só isso. 06.01.2002

3 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Rafaela Chivalski disse...

2001 foi um ano bem intenso para você...rsrsrs

Uma curiosidade sobre a Pinacoteca (acho que você já deve saber disso),o prédio da pinacoteca é a antiga escola de belas-artes de São Paulo. Por isso, ela é pequena, aconchegante. Ela não foi projetada para ser um museu, como o MASP, que é preciso uma tarde inteira para visitar todas as exposições ou pior o Louvre que é preciso uns 3 dias para visitar tudo...rsrsrs

Bjos!!!