quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Palavras

Os peixes do ar serão talvez diáfanos. Victor Hugo. Os Trabalhadores do Mar. Palavras: sou seu humilde criado para serviços leves. Podem enxergar cabotinismo na minha declaração de afeto. Toleima. Sou um trabalhador das letras mesmo que elas me repitam errado. Sou amigo das palavras – da maior parte delas, porque algumas me detestam –. Às vezes fico de birra com uma; por outras, sou alvejado com indiferença. Drummond elegeu glicínia uma palavra bela. Tentei dafnes, tílias, e quantas margaridas, sem qualquer resultado. Não me importam os significados – arbitrários – que lhes atribuímos. Pouco se me dá o sentido dos termos ironia, política ou ética. Carente de organização e método, me escondo na barafunda de jornais me iludo com as bulas e seus venenos me divirto com as listas telefônicas me engano com o manuais. Palavras missões de mim segregam estesias, ganham conformidade: uma vida humana em signos. Atribui-se a Voltaire a frase “Segurar uma caneta é estar em guerra”. Mãos sobre o teclado indagador pesquisam excruciantes segredos; viajam num retângulo saturado de sinais que prelibam abismos. Cada tecla, um desafio; cada dedo vota um medo, tenta esquivar-se da pergunta. Desconhecidas empresas aguardam incautos servidores palavrados. Eus emissões de mim são discriminados na acerba contingência das palavras. Acendrado pelos quereres me ponho a perder na vastidão de códigos indecifráveis. Sou um operário das letras mesmo que elas me emendem errado. Palavras simples hauridas à dor: estou em guerra. Uma genuína e inútil guerra. II. Palavras tiradas à dor insones, vulneradas, palavras sensadas, sabidas a flor. Palavras sonos, no olor matinal, quando em nós o dia estréia sua luz sensível. Palavras sonhos tenros parafísicas, moinhos, cenestésicas, palavras hauridas à flox. Somos o preconceito das palavras, sua instável plataforma. Arbitrários, vagos, desonestos, elas nos habitam inseguras, tomando-nos em discurso febril. Palavrinhas guardei no queijo, comidas em indolente repasto: consideram-me insensato, consumado repósito de erros. Sou cultor de palavras mesmo que elas me entendam errado. Em constructos aparentes e caros, pobre morada edifiquei sobre palavras. Se elas me ruem, se me fogem, nem por isso escapo de seus significados. No arenito inscrito à orla de vasto deserto periga sem fundação meu temerário prédio. Meticuloso, calculo a carga que as palavras precisam suportar para emular a realidade. Sobre um vasto sistema de signos, dançam a vida, a morte, os perigos, os sentimentos, a exuberância do existir continente. Sem palavras, arrisco ao léu garatujas. O esgar da mente contra o pano limpo do céu do Brasil (que Brasil). Noticia o estrelório meu silêncio conhecido pervagam-me ondas, rumores de belas letras. Estrelas aparelharam palavras para a difícil travessia da noite. Em meu catre suspiram conspiram teorias, intuem-se. Deixo-me às sombras, acidentado, escalavrando o pouco que me sou, contando as fraturas da dimensão em que vivo. Evanescentes eus recebem missões: soldado, escriba, prisioneiro: é preciso focar-me pastorear as palavras...

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