Os peixes do ar serão talvez diáfanos.
Victor Hugo. Os Trabalhadores do Mar.
Palavras:
sou seu humilde criado
para serviços leves.
Podem enxergar cabotinismo
na minha declaração de afeto.
Toleima.
Sou um trabalhador das letras
mesmo que elas me repitam
errado.
Sou amigo das palavras
– da maior parte delas,
porque algumas me detestam –.
Às vezes fico de birra com uma;
por outras, sou alvejado com indiferença.
Drummond
elegeu glicínia
uma palavra bela.
Tentei dafnes, tílias,
e quantas margaridas,
sem qualquer resultado.
Não me importam os significados
– arbitrários – que lhes atribuímos.
Pouco se me dá o sentido dos termos
ironia, política ou ética.
Carente de organização e método,
me escondo na barafunda de jornais
me iludo com as bulas e seus venenos
me divirto com as listas telefônicas
me engano com o manuais.
Palavras missões de mim
segregam estesias,
ganham conformidade:
uma vida humana em signos.
Atribui-se a Voltaire a frase
“Segurar uma caneta é estar em guerra”.
Mãos sobre o teclado indagador
pesquisam excruciantes segredos;
viajam num retângulo saturado de
sinais que prelibam abismos.
Cada tecla, um desafio;
cada dedo vota um medo,
tenta esquivar-se da pergunta.
Desconhecidas empresas aguardam
incautos servidores palavrados.
Eus emissões de mim são
discriminados na acerba
contingência das palavras.
Acendrado pelos quereres
me ponho a perder na vastidão
de códigos indecifráveis.
Sou um operário das letras
mesmo que elas me emendem
errado.
Palavras simples
hauridas à dor:
estou em guerra.
Uma genuína e inútil
guerra.
II.
Palavras tiradas à dor
insones, vulneradas,
palavras sensadas,
sabidas a flor.
Palavras sonos,
no olor matinal,
quando em nós
o dia estréia
sua luz sensível.
Palavras sonhos tenros
parafísicas, moinhos,
cenestésicas, palavras
hauridas à flox.
Somos o preconceito das palavras,
sua instável plataforma.
Arbitrários, vagos, desonestos,
elas nos habitam inseguras,
tomando-nos em discurso febril.
Palavrinhas guardei no queijo,
comidas em indolente repasto:
consideram-me insensato,
consumado repósito de erros.
Sou cultor de palavras
mesmo que elas me entendam
errado.
Em constructos aparentes e caros,
pobre morada edifiquei sobre palavras.
Se elas me ruem, se me fogem,
nem por isso escapo de seus significados.
No arenito inscrito à orla de vasto deserto
periga sem fundação meu temerário prédio.
Meticuloso, calculo a carga que as palavras
precisam suportar para emular a realidade.
Sobre um vasto sistema de signos,
dançam a vida, a morte, os perigos,
os sentimentos, a exuberância do
existir continente.
Sem palavras, arrisco ao léu garatujas.
O esgar da mente contra o pano limpo
do céu do Brasil (que Brasil).
Noticia o estrelório meu silêncio conhecido
pervagam-me ondas, rumores de belas letras.
Estrelas aparelharam palavras
para a difícil travessia da noite.
Em meu catre suspiram
conspiram teorias,
intuem-se.
Deixo-me às sombras, acidentado,
escalavrando o pouco que me sou,
contando as fraturas da dimensão em que vivo.
Evanescentes eus recebem missões:
soldado, escriba, prisioneiro:
é preciso focar-me
pastorear as palavras...
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