sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

A cerimônia de cremação

Após algum tempo vendo os cadáveres se congratularem na voragem das chamas, ocorreu-me reparar no entorno da morte. Teriam todos eles merecido sua morte? Não haveria, entre tantos que ardiam, um fraudador, alguém que solertemente se introduzira entre os mortos, só para merecer os favores do fogo, que sabia ilícitos? Jorge Luis Borges nos conta de múltiplos templos de ruínas circulares, em que medra um personagem que era muitos, porém sonhados. Entre tantos elementos, somente o fogo era seu amigo, e o sabia irreal. Na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul. Esse homem sabia que sua obrigação imediata era o sonho. Sonhou uma nuvem de alunos taciturnos, que esgotavam os degraus de um anfiteatro circular: os rostos dos últimos pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. Insatisfeito com aceitarem passivamente sua doutrina, o mago diplomou para sempre esse vasto colégio, em prol de um único aluno, mas também este ruiu, como ruem os sonhos excessivamente rebuscados. Industriado pelo Fogo, que lhe ministrou magias, ele finalmente concebeu o filho. Sonhado em todas suas minúcias e instruído nos ritos, foi enviado rio abaixo, para oficiar em outro templo. Tempos depois, já tendo ouvido falar das artes do filho, nas ruínas de um templo circular a jusante, o mago se viu cingido pelas chamas. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando. Em meio a essa digressão chega, de barco, uma turba, juntamente com a família, conduzindo um sadhu, havido por santo. Do morto, seguramente boa pessoa, bom chefe de família, marido amantíssimo e pai extremoso, nada apurei, porque os da multidão se desmanchavam aos brados de Osho! Osho! Osho! Ooooooooooosssssssshooooooooooooooooooooooo!!! Do momento em que aportaram, até a deposição do morto numa confortável e espaçosa pira, bem acima das outras, menos respeitáveis e mais próximas da água desse rio que todas as nações resolveram chamar Ganges e que, na Índia, se chama Ganga, um enorme grito se construía: Osho. Depois da pausa para breves preces, alguns passes mágicos - que não excluíram algumas voltas ao cadáver - e mais oshos, muitos oshos! Não passou despercebida uma figura, um tipinho vestindo alaranjado berrante, que gritava, a mais não poder, o nome de seu preferido. Toda vez que sentia um arrefecimento nos ânimos cultuais ele tomava a si a tarefa de informar ao mundo a quem se devia veneração. Não apenas berrava. Erguia as mãozinhas, gesticulava e parecia incorporar o próprio Osho, tamanha a fé, o entusiasmo. Não se contentava em gritar: esmurrava os ouvidos dos pobres turistas. Sustentava o brado saboreando cada silaba de tão propício nome: Osho!!! A certa altura, vi que a ele se juntara outra pessoa, e ambos seguiam rumo ao nirvana (no caso, conquistado a duras penas e muitos berros). Era um ocidental, segundo me pareceu e, por segundos, divisei o que pensei ser a figura do Júlio. "Essa não! Júlio, um místico!", pensei. Felizmente, tudo não passou de um golpe de vista desastrado, e o Júlio navegava com segurança rumo a algum passeio turístico. Pelo menos, foi isso que ele me disse, na volta. Phuket, 20 de janeiro de 2006.

2 comentários:

Anônimo disse...

manda uma foto desse osho.gostei do nome vou rebatizar meu gato que se chama guarayo

Manelim disse...

Fala ai, mano!


O caro se chama Osho, nao e mentira!

Nao tenho foto dele, mas no Brasil se vendem livros do garoto.

Grande abraco!