domingo, 28 de dezembro de 2008

Assim falou Roubini

(...) a maior bolha de ativos e crédito da história humana está se desfazendo agora, e as perdas totais de crédito devem se aproximar de atordoantes US$ 2 trilhões. Assim, a menos que os governos recapitalizem rapidamente as instituições financeiras, a compressão de crédito se tornará ainda mais severa, porque os prejuízos podem crescer mais rápido que a recapitalização e os bancos se verão forçados a reduzir créditos e empréstimos. Os preços das ações e de outros ativos de risco caíram acentuadamente ante seus picos do final do ano passado, mas existem outros riscos significativos de queda. Um consenso emergente sugere que os preços de muitos ativos de risco -entre os quais as ações- caíram tanto que chegamos ao fundo, e uma recuperação rápida ocorrerá. Mas o pior ainda está por vir. Nos próximos meses, as notícias macroeconômicas e os resultados de lucros e prejuízos das empresas de todo o mundo serão muito piores que o esperado, o que colocará mais pressão de baixa sobre os preços dos ativos de risco, porque os analistas de ações ainda estão se iludindo com a idéia de que a contração econômica será curta e amena. A compressão de crédito se agravará; a desalavancagem continuará, com fundos de hedge e outros agentes endividados forçados a vender ativos em mercados carentes de liquidez e perturbados, o que resultará em novas quedas de preços e levará mais instituições financeiras insolventes a quebrar. Algumas economias de mercado emergente certamente sofrerão crises financeiras graves. Assim, o ano que vem, de 2009, será um período doloroso, de recessão mundial e de mais desgaste financeiro, prejuízos e falências. Apenas ações de política agressivas, coordenadas e efetivas pelos países avançados e de mercado emergente poderão garantir que a economia mundial se recupere em 2010, em lugar de entrar em um período de estagnação econômica mais longo. Um bom 2009 para você também, Roubini!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Papai Noel às Avessas

Papai Noel entrou pela porta dos fundos (no Brasil as chaminés não são praticáveis), entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Tateando na escuridão torceu o comutador e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças (no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada) e avançou pelo corredor branco de luar. Aquele quarto é o das crianças Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos soldados mulheres elefantes navios e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo no interminável lenço vermelho de alcobaça. Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo. Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo. Papai Noel voltou de manso para a cozinha, apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental".

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Volta ao criacionismo

Editorial da Folha de S. Paulo, de hoje: NO BRASIL como em outros países, observa-se uma crescente pressão de determinadas comunidades religiosas para aumentar a influência sobre o ensino. A face mais visível da investida está na reivindicação de que a mal denominada "teoria" criacionista seja ministrada lado a lado com a teoria da evolução por seleção natural. Sob o argumento de que Charles Darwin (1809-1882) não explicou tudo sobre o mundo natural e por isso sua teoria não teria comprovação definitiva, defende-se o ensino da alternativa: uma inteligência superior teria criado o mundo com todas as espécies conhecidas. Há poucos conjuntos de proposições sobre a natureza que encontram tanta corroboração em fatos quanto a teoria da evolução. Sua versão conhecida como Síntese Moderna agregou as descobertas da genética à matriz do pensamento darwiniano e se encontra na raiz do enorme desenvolvimento das ciências biológicas durante o século 20. Ao criacionismo falta apoio empírico minimamente comparável. Apesar disso, alguns estabelecimentos brasileiros com orientação religiosa ensinam a criação divina até em aulas de biologia, física e química. A justificativa está numa noção de pluralismo que não tem cabimento no ensino de ciências. A obrigação do professor dessas disciplinas é apresentar a seus alunos o conhecimento mais atual e seguro, com apoio em observações e medições. É um equívoco atribuir o mesmo status a coisas tão díspares. De um lado, uma teoria aperfeiçoada e corroborada ao longo de 150 anos de estudos; de outro, uma narrativa religiosa, apoiada sobre a autoridade bíblica e recusada pela maioria dos cientistas. O equívoco maior, contudo, é não restringir o ensino do criacionismo às aulas de religião, permitindo que seja ministrado em ciências. Essa atitude solapa, na formação das crianças, os fundamentos do método científico. Apontar a incongruência entre criacionismo e ciência, no entanto, é o máximo que o poder público tem a fazer nesses casos. Se a opção dos pais, consciente, recair sobre uma escola religiosa privada que ministre o criacionismo, inclusive em ciências, essa é uma esfera de decisão imune à intervenção do Estado. A Bíblia faz afirmações ambiciosas, totais, sobre o mundo, assumindo a cosmogonia do contexto em que redigida. Exatamente como as outras grandes mitologias de então, a Bíblia tem hoje mero valor literário, que reputo modesto. O que me agasta é sua moralidade (não me detive ante a autoridade de Homero, por esse mesmo delito, lembro). O mundo foi criado em seis dias? Foi. E não. Certo. O que preocupa é o duplipensar inerente ao discurso criacionista.

sábado, 13 de dezembro de 2008

França

Espanha

Tempo de estudo

Comprei várias sacas de café, em ordem a prevenir tardes acidentadas e noites nebulosas. Não demorou nadinha para o estômago, esse versátil comissário da digestão do mundo, vetar o ouro negro. Inabilitado o café, passei a extrair da coca cola a cafeína necessária à disciplina das pálpebras. Resultado: ainda não passei em nenhum concurso e, como o leitor pode ter adivinhado, já fui internado três vezes, por overdose de coca (cola).

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Uma empulhação no Congresso

Fernandão Rodrigues, na Folha de hoje: 
O modismo agora no Congresso é a tese da "coincidência de mandatos". Trata-se de unificar as eleições de todos os cargos eletivos do país: vereador, prefeito, deputados, governador, senador e presidente. Os mandatos passariam a ter cinco anos, sem reeleição para os postos executivos. O Brasil adotou os quatro anos de mandato com chance de uma reeleição só a partir do pleito de 1998. (...) Adversários do modelo sempre sacam do coldre o sofisma sobre a alta taxa de reeleição entre os prefeitos e governadores que disputam no cargo um segundo mandato. Mas essa é a lógica do sistema. O ciclo político é de mandatos com oito anos com uma espécie de mata-burros no meio. Administradores rejeitados ficam pela estrada. Marta Suplicy que o diga. A tese a favor da coincidência de mandatos pode ser resumida em dois pontos: 1) o Brasil pára a cada dois anos, por que as eleições de prefeitos e de vereadores são separadas das outras, e 2) custa muito caro fazer tantas eleições. Primeiro, o Brasil não pára em ano de eleições. Mais de 5.500 prefeitos foram eleitos em outubro. Nenhuma cidade entrou em colapso por causa das campanhas. Sobre o custo das eleições, o valor é bem menor do que a soma das emendas ao Orçamento apresentadas por deputados e senadores. Em democracias desenvolvidas, quanto mais se vota, melhor. Na cabeça de muitos no Congresso, o raciocínio é o oposto. Querem os eleitores votando menos. Suas excelências seguem em marcha batida para consolidar aquela triste máxima: toda vez que um deputado tem uma idéia, o Brasil piora. 
As eleições no Brasil são, sim, carésimas. Mas existem coisas piores. Estive dando uma espiadinha no sistema tributário nacional e fiquei estomagado com a orgia de impostos e contribuições, criadas como se o mundo durasse só até amanhã e fosse imperioso virar o contribuinte de cabeça pra baixo e extrair-lhe o último ceitil. 

Lembro-me de uma "contribuição" incidente sobre a assimilação de tecnologias de ponta, cujo produto supostamente se destina ao fomento dessa mesma tecnologia. Paga-se 10 por cento para utilizar um produto de que o País precisa desesperadamente. Um observador intergalático perguntaria quem foi o inimigo do País que inventou essa bisonhice... 

Quanto à coincidência de mandatos, na condição de criado do Estado em todas as eleições nos últimos 20 anos, tenho lá minhas simpatias... Talvez não seja a maior empulhação em gestação no Congresso.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Juízes

QUANDO INGRESSEI na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro! Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados. KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, juíza de direito, na Folha de São Paulo de hoje.

domingo, 16 de novembro de 2008

O menino

A nossa pupila diz que quantidade de homens há dentro de nós. Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. Os Trabalhadores do Mar – Victor Hugo – traduzido por Machado de Assis. Sou o menino que a vida ensinou demais a sentir; o que se demora na lição do sentimento. Um menino improvável, de começos extraordinários. Quem o consultava ficava melancólico pelo resto da vida. Eu, que o entrevistei, terei agora de me dedicar à complexa arte de envelhecer. 16.11.2008.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Hawaii

Ouro Preto

Apartamento

Apartamento 1901, penúltima chance antes do céu pelo lado nascente. Na porta, o nove inclina-se, flertando a possibilidade do seis. A vista da cidade média, casas escalando – não muito rápido – a colina são bento. O edifício dispõe em pares as famílias comunicando-as na praça que é fonte sob pórticos a balizar nossa indecisão. O elevador, de gravuras rupestres, se distorce com a estamparia no aço. Sabe o regime do prédio. Indefeso ante aplicados artistas do canivete, sugere, constrangido, um retrato desses teens pobrema orgulho dos pais. Se o 19º é alto demais para que suba a comida, desço reservado à continência da fome. A vista do entorno campão: vacas alternativas oscilam nos pastos, fazendas imaginárias. Novembro de 2000.

sábado, 8 de novembro de 2008

Comidas

Comida interessante na república Tcheca. Mas o que chama a atenção são as cervejas. Eles não vendem cerveja nos bares e restaurantes, e sim chope. Dourado, encorpado e saboroso, o chope deles embriaga inteiramente. No último dia de 2005 nos recomendaram uma fábrica de chope, com uns 500 anos de história, perto do Castelo, mas ela estava fechada, e ceamos em uma taberna. Chope competentíssimo. Noutro restaurante, de comida típica tcheca, pedimos alguns pratos e duas jarras de chope (litro e meio, cada). Ainda que aplicados e obstinados, não fomos páreo para tamanha esbórnia. O tipo pilsen de cerveja foi inventado pelos tchecos, que são muito orgulhosos de suas habilidades de mestres cervejeiros e bebedeiros. 2. Muitos falam mal das casas de fast food, atribuindo-lhes metade dos problemas do mundo. Até filmes já fizeram, desancando o McDonalds. Contudo, após uma semana de restaurantes locais na Índia, você chega de joelhos a uma dessas casas. Sim, confesso que fui a uma KFC. Sério. Sei que é constrangedor, mas não pude evitar. De repente eu estava às voltas com asinhas e coxinhas de frango empanadas, amarelas e picantes. Bastante oleosas, um alívio frente à comida oferecida na Índia. McDonalds? Pizza Hut? Passamos a freqüentar esse mundo previsível e uniforme, olimpicamente alheio aos caprichos e temeridades da cozinha indiana. Após me refestelar num Burger King, passei sem demora à Häagen Dasz que ficava em frente, para a desintoxicação. 3. Onde quer que eu vá não dispenso uma visita a essa sorveteria francesa, de sabores refinados e nome alemão: seja no shopping mais elegante de Santiago, na Oscar Freire, em São Paulo, no bairro do Chiado em Lisboa; em Barcelona e Madri; no aeroporto de Frankfurt; na Siam Square de Bancoc; na principal rua turística de Chiangmai ou nas 7-Eleven de Tóquio e Toronto. Ou na Euclides da Cunha de Campo Grande. Curiosamente, em Paris, com sua solar gastronomia, não me ocorreu provar desses sabores. 4. Em toda a antiga Indochina, que compreende Vietnã, Camboja, Laos, e Mianmar, entre outros, reina o arroz com jasmim.

Hong Kong

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Obama

Após oito anos de descalabro moral, de terrorismo de Estado, com torturas determinadas pelo presidente da República em documentos secretos e promessas de guerras sem fim, o povo norteamericano demonstra que é capaz de superar-se e regenerar-se de seus erros.
Obama, obviamente, não fará milagres. Se desmontar a máquina do terror financeiro, político e militar de Baby Bush, encontrará lugar de honra na história.
Causa espanto, todavia, a pequena maioria de votos (parcialmente explicada pelo grotesco sistema indireto de eleição presidencial norteamericano, uma aberração que a história se encarregará de abolir), como se Junior e Cheney, cercados das mais tóxicas pessoas do mundo, a exemplo de Carl Rove e Condolências Rice, não tivessem exercido o mais mesquinho governo da história moderna, em democracias.
Tive medo, nesta terça-feira. Tive medo de que o teratológico sistema de votação estadunidense, os conservadores e a direita religiosa raivosa impelissem os Estados Unidos para mais guerras e mais hecatombes financeiras.
Acordei nesta quarta com a auspiciosa notícia de que os sonhos, quando dignos, bem merecem ser vividos.

Jalapão

Jalapão

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Luz azul

Alguns dias medem séculos, por poderosos. A luz nos alcança e enfeitiça a vida. A verdade de algumas tardes pode vidas. Então queremos.

França

França

The Economist

Blog do Vinícius: A liberalérrima revista britânica "The Economist" declarou seu "voto" para Barack Obama, a quem John McCain chama de "socialista", nos seus acessos de gagaísmo e safadeza. Está na capa da edição desta semana, que circulou hoje, quinta, 30 de outubro.

Luz

Se o seu enclavinhar é único que dizer dos olhos? No calor de suas mãos, perfeito empalme de sonhos. No ponto de ônibus o descortinar de um mundo
real? Não certamente, que a realidade não compreende o mágico, o etéreo. No ponto de ônibus 1987 o interpelar da quintessente beleza melífluo diálogo penumbra que às almas põe a lume. Tão grave demanda frente a frente com tão ansiado dulçor ... E o seu primeiro sorriso que é de lindes lindíssimo dos futuros emprestou auxílio (os sorrisos-ensaios do querer) a vida para sempre me iluminou.

O CONAMA, o MPF, a indústria e nós

Estadão de hoje: Foi assinado ontem um acordo judicial para compensar o não cumprimento da Resolução 315 de 2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que determinava a adoção, em todo o País, de um diesel mais limpo, chamado S50, com 50 partes por milhão (ppm) de enxofre. O enxofre é um poluente com potencial cancerígeno. O termo é menos rígido do que diz a norma. É o caso do diesel fornecido hoje no interior, com 2.000 ppm de enxofre. Ele será substituído, a partir de 1º de janeiro, por um diesel um pouco menos sujo, com 1.800 ppm de enxofre. E deverá ser gradualmente trocado, até 2014, pelo diesel com 500 ppm de enxofre - 900% mais poluente do que o S50. Nas regiões metropolitanas, que hoje recebem o diesel com 500 ppm, apenas os ônibus urbanos serão "limpos", seguindo cronograma diferenciado. Os ônibus de São Paulo e Rio serão abastecidos com o diesel S50 no início do próximo ano. Até 2011, as frotas das cidades de Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e das regiões metropolitanas de São Paulo, da Baixada Santista, Campinas, São José dos Campos e Rio também receberão o combustível menos poluente. Só as regiões metropolitanas de Fortaleza, Belém e Recife serão totalmente abastecidos com S50 a partir de 1º de maio de 2009.
A resolução, que a indústria não cumpriu por ampla e justificável falta de tempo, é de que ano mesmo? Hum... deixe-me ver... Dois mil e... DOIS! Indiferente a todos esses sucessos, e às necessidades (de lucro) da indústria, O Conama aprovou ontem resolução que antecipa para 2012 a adoção do diesel S10, com 10 ppm de enxofre, no abastecimento de veículos pesados no Brasil. Para veículos leves, o Conama ainda vai elaborar uma nova resolução. Fala sério, leitor: você deixaria seu filho respirar um ar desses?

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Lyon

Caixa Postal

Abro a caixa postal na expectativa de temperar matéria viva com esperança. Mas de lá, sei, saltam selos, logotipos, divisas duras, a nódoa comercial. Detetives, banqueiros, estatais, o sapateiro, alfaiates me querem, em pessoa ou na forma promissória. “Compre, adquira, receba grátis (por módica quantia indenizatória); consuma o que quiser apenas nos pague, Senhor nº n, que somos entidade filantrópica, sem fins lucrativos, mas amamos fazer circular a riqueza.” No sábado abro a caixa dos correios e o negócio é uma feijoada, a que compareço, em minha (predileta) manifestação cartão de crédito. Os afiadores de facas merchandaizam (que facas, limadas, abrem novas polpas, sequer supostas na praça dos desatentos). Matéria viva não há. A última carta de amor recebida foi nunca e desde então me apreende essa procura (carta de amor: pro cura). A última carta de amor recebida, embebida em anseio e vocativo natural, veio de uma terra tão difícil... (conheço o lugar, mas os ventos estão desaparelhados de rosa). “Senhor Gérson, elimine sua
pediculose, refresque seu quarto, compre dólares verdes georges, arremate nosso dócil camelo, viagem de férias pelas arábias; entre para o seleto clube de civis que possuem um caça usado, vá à Polônia ver o túmulo do Papa...
Senhor Gérson, que chato!
O senhor não tem colaborado!” Indiferente a tudo, ambiciono o bilhete da remota companhia a prometer viagens à Lua. No domingo, não obstante a dificuldade de acordar, com as chaves da felicidade nas mãos lanço-me ao bunker onde se esconde tanta correspondência para retirar meu certificado de vitória, meu diploma de bem-sucedido na vida. Nesse mesmo domingo é que as correspondências comerciais mais se mostram terríveis: desarmando mãos varadas pela expectativa e driblando olhos injetados de necessidade, de co-respondência, elas partiram voluptuosas para o negaceio, amigando-se às mitológicas cartas de amor, deixando meu pobre ego à mingua das carícias superficiais comerciais que tanto amo desprezar. Releio, altavoz, antiga correspondência: “compre nossos serviços, senhor ___________________________, que nós só o prestamos por altruísmo (e faremos descontos especiais a quem nos ligar com lágrimas nos olhos e cartão de crédito nas mãos). Lucro não nos dá, senhor. Nós o amamos, deixe-nos embriagar suas baratas, reformar suas teias de pensamentos e gritos”. O que mais me agrada é a correspondência bancária. Não raro vou às lágrimas, enlevado com os poemas em forma de extrato. Os borderôs de cobrança me comovem. Seriam aqueles números (montante, multa por atraso e juros de mora) a música de Pitágoras, que a impressora vazou em manchas pretas? Embora eu saiba que eles são contra apresentação, eu me apresento, de mãos abertas, e os recolho para brincar em meu colo, em minha conta bancária. Os bônus de desconto expiam meu salário salvando a espécie pecadora. Abro minha carteira com alegria: fui convidado a comprar. De joelhos chego ao templo do consumo e, já que de nada careço, deixo minha oferenda, comprando-me numa liqüidação anual.