Observador desenganado de eleições há muito, quisera eu ter escrito o que segue:
O eleitor brasileiro tem mania de olhar com distanciamento típico dos "scholars" o quadro de ruína de sua cidade.
Age como se nada fosse com ele. Cômodo. Muito cômodo. Mas desonesto.
Todos deveriam desperdiçar um naco deste domingo eleitoral para fazer uma introspecção.
Pode ser após o despertar, barriga colada à pia do banheiro, enquanto espalha o dentifrício pelas cerdas da escova.
Levando a experiência a sério, depois de bochechar e lavar o rosto, o portador de título eleitoral enxergará no espelho, ao se pentear, o reflexo de um culpado.
Indo mais fundo no processo de auto-exame, o eleitor enxergará o óbvio: prefeitos e vereadores não surgem por geração espontânea. Eles nascem do voto.
E o eleitor talvez levante da mesa do café da manhã convencido de que os dramas de sua cidade exigem dele uma atitude. Um gesto individual e consciente.
Os problemas, por abundantes, não admitem mais que o eleitor se mantenha exilado no conforto de sua omissão política. Intimam-no a retornar à história de sua cidade, consertando-a.
O primeiro passo é o abandono da tola retórica de que os políticos "são todos iguais". Não são.
A igualdade absoluta é uma impossibilidade genética. É papel do eleitor distinguir diferenças, não erigir desculpas que, na prática, o eximem de pensar.
O segundo passo é a caída em si, a descoberta de que se está diante de um desses momentos mágicos.
Circunstância única, em que o poder está ao alcance do dedo indicador, que dedilha o teclado da urna eletrônica.
A magia desse instante está na possibilidade de começar tudo de novo, do zero. Não é todo dia que se tem uma nova chance.
Lembre-se: para o eleito inconsciente, o eleitor impaciente é um santo remédio.
Assim, ao abrir o guarda-roupa, escolha um traje especial, à altura da ocasião. Leve a mão ao fundo do armário. Desencave aquela roupa empoeirada. Vista-se de cidadão.
Ao ganhar o meio-fio, apague por um instante de sua mente os megatemas que polvilham a primeira página dos jornais.
Esqueça George Bush. Risque de seus pensamentos a crise dos EUA e os reflexos dela no Brasil.
Abra o seu espírito para as miudezas que o cercam. Se estiver num grande centro, respire com vagar.
Absorva cada partícula de poluição a que tem direito. Aguce o tímpano. Deixe que os ruídos urbanos o invadam.
Dê uma boa olhada na feiúra à sua volta. Repare na sujeira das ruas e dos monumentos.
Fixe o olhar nos buracos da pista. Observe a ausência de transportes coletivos decentes. Note o lixo acumulado na quina do asfalto.
Eis a cidade diante dos seus olhos. É nesse pedaço de universo, vísceras à mostra, que você come e passa fome, dorme e perde o sono, trabalha e fica desempregado, ama e odeia, canta e chora, espolia e é assaltado. É aqui que você vive e morre a cada dia.
Entrando na cabine eleitoral, trate de pôr um ar solene na face. Não tenha pressa. Você é o dono desse momento. Aproveite-o. Deguste-o. Você é o protagonista do espetáculo.
Faça uma visita ao seu interior. Encontre-se consigo mesmo. Certifique-se de que não esqueceu a consciência em casa. Converse com ela. Questione-a. Depois, estique o dedo e vote com a alma.
Há sempre a alternativa de lavar as mãos e continuar entregando o caso à divina providência.
Se preferir esse caminho, tudo bem. Mas não reclame amanhã, quando descobrir que Deus está morto. Sua omissão o matou. Sente-se. Reze. Peça perdão. Expie os seus pecados. A ruína política é você.
PS.: O texto acima é adaptação de um outro, escrito pelo repórter nas eleições municipais de 2000.
Escrito por Josias de Souza às 20h07
Nenhum comentário:
Postar um comentário