domingo, 22 de novembro de 2015

Reynaldo Rocha: O país viciado em morfina

Somente quem já teve a necessidade de ser medicado com morfina pode entender o uso dessa droga. Nada contra: sentir dores é pior, muito pior. O problema maior é que ela oculta a doença. Faz com que as dores sejam suportáveis e desapareçam. Mas elas retornam ao fim da dose ainda mais intensas.


Durante a paz da droga, não se consegue enxergar um metro à frente. A ausência da dor é tão bem-vinda que leva o usuário a esquecer do entorno.

Existe morfina para um país? O Brasil mostra que sim. Um país não morre. Não desaparece. Sempre renascerá no dia seguinte. O que leva uma nação a usar morfina? Quem receitou esta droga que alivia dores e elimina a capacidade de raciocinar, interpretar e tomar para si as decisões?

Acompanhamos mares de lama que nos afogam. Somos instados a escolher entre o bandido da Suíça e o canalha de São Bernardo.

Como no conforto do opióide, deliramos acordados. E ignoramos que há um mundo fora da agulha no braço.

Quem está inebriado se esquece que a dor maior vem depois. O fim do efeito da anestesia é o começo do pesadelo.

O Brasil está anestesiado, viciado em morfina. As doses são sempre mais elevadas.

Um mal é substituído por outro. A terapia não busca a cura. Só prolonga a sobrevida.


Até quando? Um país não morre. Mas o país somos nós. E nós somos finitos. Com ou sem morfina.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

José Casado

A fila do cartório estancou. No balcão, uma jovem senhora de cabelos prateados arriscava a serenidade diante do indecifrável. Para conceder um documento, exigiam-lhe o CPF da mãe.

Ela argumentava: — Mas a minha mãe morreu há trinta anos e nunca teve um CPF...

— Só com o CPF dela — repetia a cartorária.

Ao perceber que a fila a conduzira à fronteira de uma dimensão irreal, onde o absurdo é a regra, aventurou-se num quase patético pedido de ajuda: — Por favor, então me explique: como é que eu tiro o CPF de alguém que não é mais uma pessoa?

A escrevente mirou-a com firmeza, e retrucou: — Eu não sei, mas sem o CPF não faço.

Cármen Lúcia Antunes Rocha agradeceu e foi embora mastigando seus versos prediletos de Carlos Drummond de Andrade: 

As leis não bastam
Os lírios não nascem da lei
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra...


Três décadas atrás, nas aulas de Direito Constitucional na PUC de Minas, aprendera que o Estado existe para servir às pessoas. Hoje, na vice-presidência do Supremo Tribunal Federal, continua acreditando que o Estado não existe para infernizar a vida dos outros. (...)

Hélio Schwartsman - BANDIDOS

Qual a diferença entre o coletor de impostos e o mafioso, já que ambos forçam o pobre do cidadão a pagar por "serviços" que ele não necessariamente deseja contratar? É claro, que, para os libertários radicais, a resposta é "nenhuma", mas, se formos um pouco menos intransigentes, vamos encontrar algumas ideias interessantes.

Destaco aqui a teoria do economista Mancur Olson, que traça uma distinção bacana entre bandidos itinerantes e estacionários. Ambos querem tirar o nosso dinheiro, mas são animais distintos tanto pelos incentivos que os movem como pelos métodos de que se valem. O ladrão itinerante, típico de situações de anarquia, se limita a tomar aquilo que deseja e saltar para o próximo povoado. Para tornar suas ameaças mais críveis e seu nome mais temido, não hesita em matar e destruir.

Já o bandido estacionário é, como o nome diz, um ladrão que não circula muito. Está sempre roubando as mesmas pessoas repetidas vezes. Se for apenas medianamente inteligente, ele vai concluir que ficará mais rico se permitir que suas vítimas habituais sobrevivam e experimentem algum sucesso econômico. O bandido estacionário, que é um outro nome para tirano, acabará aos poucos promovendo atividades típicas de governo, como oferecer proteção contra os bandidos itinerantes e favorecer a produção, o comércio etc. Segundo Olson, é na transição dos bandidos itinerantes para os estacionários que encontramos as sementes da civilização que, em etapas posteriores, desembocarão na democracia institucional.


Algo deu muito errado com o Brasil nos últimos meses, já que, em vez de assistir à germinação das sementes civilizacionais de Olson, como seria de esperar, estamos às voltas com a degeneração de nossos políticos, que parecem estar regredindo de bandidos estacionários para bandidos itinerantes. Assim, acabarão matando a galinha dos ovos de ouro.

Hélio Schwartsman - ABORTO

O Estado pode, em tempos de paz, obrigar alguém a correr riscos físicos aos quais não está disposto? Ele poderia me forçar a saltar de paraquedas ou a passar um ano num pesqueiro comercial? Se você, como eu, acha que não, então deveria, como eu, defender o direito ao aborto para as mulheres.

A gravidez, embora não seja considerada doença, é um estado que eleva bastante a chance de uma mulher morrer. Na tentativa de tornar a análise de risco mais intuitivamente amigável para as pessoas, estatísticos desenvolveram uma unidade especial, a micromorte. Definida como a chance de um óbito por milhão de eventos, a micromorte permite comparar o perigo envolvido em atividades e estados tão distintos quanto escalar o Himalaia (39.427 micromortes por tentativa), submeter-se a uma anestesia para cirurgia eletiva (10 micromortes, no Reino Unido), ou apenas completar um ano de vida em Serra Leoa (119.000 micromortes).

Dar à luz no Brasil implica um risco de 620 micromortes. É mais que as 120 micromortes da gestante britânica, mas menos que as 2.100 da média mundial. De todo modo, concentra em algumas horas um perigo maior que o de passar um ano servindo como soldado britânico no Afeganistão (47 micromortes) ou trabalhando em minas de carvão (430 micromortes).

Se admitimos o princípio de que o Estado não pode fazer um cidadão correr riscos à saúde que não deseje, então a legalização do aborto se torna uma necessidade lógica. "E o feto?", perguntarão os defensores das criancinhas não nascidas. Os que acreditam em Deus devem se queixar com o Criador, já que o plano divino dá poucas chances aos embriões.

Estima-se que, para cada gravidez que vinga, de dois a três óvulos fecundados sejam abortados espontaneamente. Ou seja, a cada ano, são sacrificadas no mundo entre 190 milhões e 285 milhões de pequenas vidas –um verdadeiro holocausto de almas. O mundo é um lugar cruel.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Adriano Pires e Abel Holtz

Em 2013, para o então ministro Guido Mantega conseguir fechar as contas, foi feito o primeiro leilão do pré-sal no regime de partilha. Naquela ocasião, o governo, sempre em tom populista e ufanista, anunciou que leiloaria a maior reserva de petróleo do mundo, o chamado Campo de Libra. Como seria uma joia da coroa, o governo estipulou o bônus de assinatura em R$ 15 bilhões. Uma pedalada de primeira.

Apesar de toda a propaganda que antecedeu o leilão, só apareceu um consórcio, formado por Petrobrás, Shell, a Total francesa e duas empresas chinesas. As razões para haver um só consórcio e, consequentemente, para o insucesso do leilão foram as de sempre: instabilidade regulatória e insegurança jurídica. Mas o governo atingiu seu objetivo: arrecadar R$ 15 bilhões e fechar as contas de 2013. O fim justificou os meios.

É sempre bom lembrar que a grande sacrificada foi a Petrobrás, que acabou ficando com 40% do consórcio, quando, de acordo com a Lei da Partilha, poderia ficar com apenas 30%. Mas isso foi necessário, pois, caso contrário, não haveria nenhum vencedor do leilão e o governo não atingiria o objetivo de arrecadar os R$ 15 bilhões. Este ano, o governo também precisa fechar suas contas, e, como a Petrobrás está quebrada, a solução foi apelar para uma nova pedalada, desta vez no setor elétrico.

Em 2012, no auge de suas políticas populistas e eleitoreiras, o governo publicou a Medida Provisória (MP) 579, que tinha como objetivo reduzir as tarifas por meio da renovação das concessões de usinas hidrelétricas. Na propaganda do governo, isso seria possível porque essas usinas já estavam amortizadas, então os consumidores seriam agraciados com tarifas menores, contemplando só a operação e a manutenção dessas usinas. Na época, Cesp, Cemig e Copel resolveram não aderir à MP 579, alegando, com razão, que prejudicariam seus acionistas, pois a tarifa oferecida pelo governo causaria total desequilíbrio econômico e financeiro nas empresas. As empresas do grupo Eletrobrás foram obrigadas a aderir à MP, por ordem de seu acionista majoritário, o governo federal, mesmo em prejuízo dos acionistas minoritários.

Passados dois anos (principalmente após as eleições de 2014), o governo, por meio da MP 688, muda a MP 579 e pretende cometer mais uma pedalada contra os consumidores de energia elétrica. A pedalada vai ocorrer se o Congresso Nacional aprovar a MP 688, permitindo que o governo promova o leilão das 29 usinas hidrelétricas da Cesp, Cemig e Copel.

Para atrair investidores e arrecadar R$ 17 bilhões, o governo resolveu que nós, consumidores, pagaremos uma espécie de imposto pelos próximos 30 anos. A mágica é passar da tarifa de R$ 36/MWh, definida pelo próprio governo na MP 579 como valor necessário à operação e manutenção das usinas, para R$ 137/MWh. Ou seja, um aumento de quase 300%. Com isso, cria-se uma taxa de retorno acima dos 9%, para interessar os investidores, e nós financiaremos o governo para que ele possa receber os R$ 17 bilhões e "fechar as contas".

Pode ser que o atual quadro político financeiro e a bagunça regulatória obriguem o governo a repetir a pantomima do leilão de Libra, e veremos a constituição de um único consórcio, com a presença da Eletrobrás, para vencer o leilão de todas as 29 hidrelétricas. Três observações importantes merecem ser feitas: 1) estes R$ 17 bilhões não acrescentam nenhum novo MW ao sistema elétrico; 2) o governo está nos obrigando, na forma de um imposto mascarado, a pagar mais uma vez usinas que já estariam amortizadas; e 3) essa pedalada significa um aumento de tarifa de cerca de 3% a 4%. Com a inflação mais despacho térmico e câmbio de Itaipu, calculamos aumentos médios de 20% nas tarifas ao longo de 2016.


Conclusão: o setor de energia continua sendo usado pelo governo com o único objetivo de arrecadação fiscal, sem nenhuma preocupação em resolver as questões regulatórias.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Samuel Pessoa

(...)
É mito que o gasto social tenha crescido no período Vargas e sido reduzido na ditadura militar. Há crescimento suave e contínuo desde a República Velha até o fim do regime militar, forte crescimento após a redemocratização, um salto em FHC e outro maior com Lula.

Por exemplo, o gasto público com o ensino fundamental entre 1932 e 1964 foi constante, na casa de 0,8% do PIB. De 1964 até 1970, subiu para 1,5% do PIB e atingiu 1,7% em 1984. Com a redemocratização, há um salto no gasto público com o fundamental para 2,5% do PIB em 1986, nível em que permaneceu até 2004.

O mesmo ocorre com a taxa bruta de matrícula. No final do Império, as taxas de matrícula no fundamental eram da ordem de 7%. Cresceram ao longo da República Velha para 27%. De 1933 até 1984, cresceram lentamente, até atingir 104% em 1984 (a taxa bruta pode ser maior que 100% em razão de alunos que cursam o ciclo fora da idade correta).

Para o ensino médio, a melhora substantiva ocorreu logo em seguida ao golpe militar, quando as taxas cresceram de 7% para 32% em 1977. O segundo salto do ensino médio foi de 1994 até 2003, quando cresceu de 40% para 80%.

Nos anos 1950, as taxas brutas de matrícula no fundamental eram da ordem de 55% e o gasto público total com educação, da ordem de 1,5% do PIB. O gasto público por aluno no fundamental era de 10% do PIB per capita; no ensino médio, era de 100% do PIB per capita, e, no superior, de 1.000% do PIB per capita.

A escola pública dos anos 1950 expulsava os filhos dos pobres ainda no fundamental, em razão das elevadíssimas taxas de reprovação, e em seguida gastava com os filhos dos ricos dez vezes mais no médio e cem vezes mais no superior.

Minha colega do Ibre Juliana Cunha construiu série do gasto total com Previdência desde 1920. Não há nenhuma descontinuidade perceptível na série até a redemocratização, quando há forte aceleração. É conhecido que o grande salto no gasto social foi a universalização da saúde com o SUS e a criação da assistência social não contributiva aos idosos, ambos após a redemocratização.

No governo FHC, o gasto social cresceu 0,17 ponto percentual do PIB por ano, e, no período petista, até agora e em razão da bonança econômica, o crescimento foi de 0,29 ponto percentual.

Assim, o que diferencia FHC do PT no governo não é o crescimento do gasto social, mas sim o excesso de intervencionismo estatal no petismo, para estimular o desenvolvimento econômico. É a mesma diferença que há entre a República Velha e o período do nacional-desenvolvimentismo.

Aprendemos nos últimos anos que gasto social e intervencionismo estatal não cabem ambos no Orçamento do Estado brasileiro. Márcio Holland (...) reconhece (...) que a crise atual não tem causas externas nem resulta do ajuste fiscal do ministro Levy. Antes tarde do que nunca.

domingo, 25 de outubro de 2015

Gustavo Franco

(...) A inflação é: (a) um aumento generalizado nos preços; ou (b) a perda do poder de compra da moeda?

Se você escolheu a opção (a), está diante de um fenômeno social complexo, pois é preciso pensar como é que o padeiro se comunica com o barbeiro e com os produtores de tomates, pepinos, aço e computadores, e também com as companhias aéreas e restaurantes, para todos aumentarem seus preços mais ou menos na mesma velocidade.

Talvez eles leiam os mesmos jornais, de onde aprendem sobre os andamentos da moeda e do crédito público, pois afinal, se existe uma única coisa a unir esses personagens da vida produtiva brasileira, é que todos querem moeda em troca de seus bens e serviços. A moeda é a “cafetina universal”, para usar uma expressão de Shakespeare, que Marx gostava muito de repetir.

É claro que isso nos leva à opção (b): é claro que a inflação também é a perda de poder aquisitivo da moeda, as duas alternativas estão corretas, um velho truque docente, muito usado nos vestibulares.

(...)

Seria chocante se dissesse (...) que o papel-moeda é uma tecnologia de pagamento que tende ao desuso, ao menos desde os anos 80, e que os contadores dos bancos centrais desse planeta não sabem ao certo se a moeda emitida nessas instituições tem a natureza de uma dívida.

Nos cruzeiros de 1942 estava inscrito nas cédulas que “se pagará ao portador desta a quantia de ...”, e vinha escrito o valor da cédula. Uma promessa pagável com o próprio instrumento, uma estranha redundância. A inscrição depois foi substituída por “valor legal” e, anos mais tarde, por razões hoje compreensíveis (talvez um desabafo), os dizeres passaram a ser “Deus seja louvado!”

Veja no balanço do Banco Central a conta “meio circulante”, que diz respeito ao papel-moeda em circulação: o saldo é R$ 196 bilhões para setembro/2015, tratando-se claramente de um passivo não exigível, embora não pertença ao patrimônio líquido. Veja, agora, a estatística para a “Dívida Líquida do Setor Público” e seus componentes. Lá está a “base monetária”, dentro da qual está o “meio circulante”.

Bem, o papel-moeda não é bem dívida do Estado, e esta, por sua vez, quando encarnada em títulos da dívida pública, ou dívida mobiliária, parece moeda, daí se falar em “quase moeda” pois, afinal, é muito líquida e é com ela que o Estado paga suas contas.

Não seria razoável pensar a moeda e títulos da dívida pública como uma coisa só, apenas expressões diferenciadas do “crédito público”, um atributo intangível que pulsa conforme a qualidade do governo?

Acho muito apropriado definir o meio circulante como uma espécie de ação preferencial ao portador, emitida pelo Estado, em pequenas denominações e que o Banco Central distribui pela rede bancária em troca de papel-moeda velho e, às vezes, em troca de outros tipos de dívida do Estado.

Outra maneira de ver é tomar a moeda como dívida, mas na forma de um instrumento perpétuo e sem juros. Visto assim, é fácil ver que o Estado preferirá sempre se financiar com esse tipo de obrigação. Porém, a sociedade necessita muito pouco desse instrumento e cada vez menos. A ideia de “rodar a guitarra” e abusar da emissão desses papéis, ou de moedas metálicas, está cada vez mais obsoleta, pois a demanda é muito limitada. A guitarra do século 21 é a dívida.

Aqui no Brasil, desde 2011 o TCU obriga o Banco Central a divulgar o tamanho de suas receitas decorrentes do poder de emitir moeda. Foram R$ 12,7 bilhões em 2014, equivalentes a 0,23% do PIB, já deduzidos os custos de produção desse acréscimo (R$ 487 milhões). Não é muito e não se vislumbra como isso possa crescer.

Pois bem, diante dessas definições, a ideia que o papel-moeda vai acabar, por conta do plástico e do tag, para não falar de milhas ou do bitcoin, parece especialmente grave diante da ansiedade recente em torno do monstro que dá título a este artigo. Na presença dessa criatura alienígena recém-chegada, segundo se diz, o governo não terá alternativa senão imprimir vastas quantidades de papel-moeda para pagar suas contas, inclusive a dívida pública.

Mas como se dará tal coisa se o papel-moeda está destinado à extinção?

(...)

De fato, a vida ficaria muito mais difícil para a bandidagem na ausência de dinheiro em espécie, pois tudo transitaria por bancos deixando rastros para os agentes da lei. Foi assim que pegaram o doleiro Youssef, por exemplo, e se desenrolou o novelo do “petrolão”.

Quanto ao financiamento do Estado sob dominância fiscal, todavia, não vamos escorregar na nossa ansiedade: é tudo uma questão de preço. Pague-se mais juro que o povo aceita mais dívida, e esse tem sido o caminho percorrido faz muitos anos. O Brasil não tem a maior taxa de juros do mundo porque seus poupadores são campeões mundiais de ganância, mas porque tem o Estado mais endividado do mundo em proporção à riqueza do país. O monstro não é de outro planeta, nem é desconhecido: mora em Brasília há muitos anos e vinha emagrecendo até 2008. A partir daí, Dilma Rousseff, seguindo conselhos econômicos da pior espécie, resolveu terminar a dieta, e a criatura recomeçou a crescer.

Quanto mais dívida, mais juros, simples assim. Não há nada de novo nesse assunto de dominância fiscal, apenas mais clareza sobre como a política fiscal esmaga a política monetária, o que é um grande progresso.

Saint Giles Le Bains - Reunião


sábado, 24 de outubro de 2015

Défict primário ou nominal? OPERACIONAL

Há um bocado de confusão sobre as medidas de déficit público. As mais usadas são o déficit primário e o déficit nominal. Nenhuma das duas é uma boa medida de quanto nós temos que nos endividar para cobrir o déficit público.

O déficit primário considera o que o governo arrecada com impostos, seus gastos e transferências, mas não considera as despesas do governo com pagamento de juros da dívida. É, portanto, uma medida bastante incompleta do quadro fiscal.

O déficit nominal leva em consideração os gastos com pagamento de juros. Muitos consideram essa a melhor medida de déficit público, mas na verdade, é uma medida muito pouco relevante. O problema é que o déficit nominal desconsidera a inflação.

Para entender esse ponto, suponha que um país tenha dívida de $100 e que os juros da dívida sejam de $10 em um ano. Esses $10 devem ser incorporados como gastos do governo? Depende:

Se não houve inflação no período, para que a dívida não aumente, esses $10 devem ser pagos. Portanto, nesse caso, esses $10 devem ser computados na conta do déficit (ou superávit) público.

Se a inflação no período foi de 10%, esses $10 apenas corrigem o valor da divida de acordo com a inflação. Em termos reais, a dívida de $110 ao final do ano equivale a dívida de $100 no início do ano. Assim, esses $10 não devem ser computados na conta do déficit. Os “juros” de $10 estão apenas atualizando o valor da dívida considerando a inflação.

Em casos intermediários, apenas os juros reais devem ser computados. Por exemplo, se a inflação foi de 5%, corrigimos a dívida pela inflação (de $100 a $105) e computamos os outros $5 como despesas com juros reais para calcular o déficit.

No caso do Brasil de hoje, isso significa o seguinte:

Esse ano, o déficit primário no Brasil estará (relativamente) próximo de zero. Ou seja, sem considerar as despesas com juros da dívida, as despesas do governo serão um pouco superiores à arrecadação.

Contudo, há o pagamento com juros. Fazendo uma conta muito aproximada, se a dívida pública está perto de 63% do PIB e a taxa de juros no período será próxima de 13,5%, chegamos a um déficit nominal próximo a 9% do PIB. Um número enorme. E irrelevante.

Afinal, a inflação esse ano será próxima de 9,5%. Assim, boa parte dos juros sobre a dívida está apenas corrigindo seu valor considerando a inflação. A taxa de juros reais (ou seja, descontando a inflação) será algo como 4%, e isso implica um déficit de verdade próximo a 2,5% ou 3% do PIB.

O conceito de déficit que leva em conta os juros reais sobre a divida pública é o déficit operacional. Apesar de ser raramente mencionado, é o que melhor representa o quanto de fato o governo gasta mais que arrecada e como isso afeta a dívida pública.

Infelizmente, as estatísticas oficiais não mais incluem o déficit operacional. Este deve fechar o ano de 2015 próximo dos 3%, como na conta aproximada acima.

Tem sido dito que os juros da dívida esse ano serão algo como 8% do PIB (que equivale a cerca de 15 vezes o Bolsa Família). Esse número é irrelevante, pois a maior parte desse montante está apenas corrigindo o valor da dívida pela inflação. É incorreto dizer que o gasto com juros seja 15 vezes o Bolsa Família.

O gasto real com os juros da dívida será em 2015 algo mais próximo de 2,5% do PIB, que é muito. Considerando as baixas taxas de juros vigentes hoje no mundo, deveríamos ser capazes de ter taxas de juros muito menores e uma conta de pagamento de juros muito menor (eu falei sobre isso neste post).

Por fim, a diferença entre o que o governo gasta e arrecada é o aumento na dívida do governo.

Se o déficit operacional é zero, há um aumento nominal na dívida, mas em termos reais, ou seja, considerando a inflação, a dívida permanece constante.

Contudo, esse ano, deveremos ter um déficit operacional de cerca de 2,5% ou 3% do PIB. Esse é um número preocupante, porque a dívida já é alta (para nossos padrões) e continuaremos tendo déficit nos próximos anos. Precisamos resolver esse problema.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Na semana passada discutimos "dominância fiscal", situação na qual um governo incapaz de servir sua dívida levaria a inflação a fazer o serviço que ele não faz, isto é, adequar o valor da dívida àquilo que consegue realizar do ponto de vista de seus gastos e receitas.

Concluímos que, sob tais circunstâncias, o Banco Central perderia a capacidade de controlar a inflação, independentemente da política adotada. Deixaria, por assim dizer, o banco do motorista e iria para o do passageiro (alguns, mais críticos, sugerem que o BC terminaria o processo no bagageiro).

Se isto for verdade, há uma forma —um tanto imperfeita, mas fazer o quê?— de aferirmos se já nos encontramos em tal situação: basta avaliar as expectativas sobre o comportamento futuro da inflação.

Caso já estejamos sofrendo essa síndrome, as expectativas deveriam revelar inflação crescente, movendo-se para longe da meta. Em particular, quanto mais distante o horizonte, tão mais altas deveriam ser as previsões inflacionárias.

Investigando em primeiro lugar as expectativas coletadas pelo Banco Central por meio de sua pesquisa Focus, não encontramos este padrão. Estas permanecem acima da meta tanto para este ano (9,75%), como em 2016 (6,12%), 2017 (5,0%) e 2018 (4,7%), mas convergem para ela em 2019. Os desvios são elevados no horizonte mais curto, porém menores nos horizontes mais longos, precisamente o contrário do que se esperaria no caso de dominância fiscal.

Isto dito, há problemas óbvios. Como já argumentei em outras ocasiões, as expectativas coletadas pela Focus costumam ser otimistas, tipicamente projetando taxas de inflação mais baixas do que as que efetivamente se materializam, o que também nos levaria a conclusões otimistas acerca da dominância fiscal.

Há uma alternativa, porém. Podemos investigar a chamada "inflação implícita", isto é, a diferença entre a taxa de juros de um título público sem correção inflacionária (NTN-F) e um título corrigido pela inflação (NTN-B) em prazos semelhantes. No caso, papéis que vencem em 2017 (NTN-F com rendimento de 15,3% ao ano e NTN-B com rendimento de inflação mais 6,2% anuais) sugerem que a "inflação implícita" para aquele horizonte se encontraria na casa de 8,6% ao ano, bem mais alta do que o implicado pela Focus para o período até aquele ano.

Mesmo nesse caso, porém, não parece haver uma crença de inflação crescente. Pelo contrário, para vencimentos mais longos as projeções implícitas de inflação revelam queda modesta, ainda que longe da meta, na casa de 7,5% anuais.

É bem verdade que, pouco antes da desastrada divulgação da proposta orçamentária para o ano que vem, estes números eram mais baixos, na casa de 6-6,5% ao ano, mas, ainda assim, as apostas do mercado financeiro não parecem (ainda) sugerir um processo inflacionário totalmente descontrolado, como se esperaria numa situação de dominância fiscal.

Se nossa interpretação estiver correta, não se conclui que o país esteja imune ao problema; implica apenas que haveria ainda fé na nossa capacidade de voltar a uma política fiscal mais responsável em algum horizonte de tempo.


Neste caso, contudo, não se poderia inocentar o BC pela deterioração das expectativas inflacionárias. É ele ainda o motorista que tem nos levado a um caminho mais do que perigoso.

Juros e a TJLP (Bernardo Guimarães)

Mais uma reunião do Copom, o Banco Central decide hoje se mexe na taxa Selic, uma das taxas básicas de juros na nossa economia. A taxa Selic é muito maior que a taxa de juros básica vigente na grande maioria dos países. Isso afeta negativamente a economia brasileira.

Esquece-se, porém, que temos também uma taxa básica de juros muito baixa na economia, a TJLP, que baliza os empréstimos às empresas agraciadas com o crédito subsidiado do BNDES.

Se tivéssemos apenas uma taxa básica de juros, ou seja, se o governo não emprestasse rios de dinheiro a taxas muito inferiores à que o próprio governo paga em sua dívida, teríamos uma taxa Selic menor sem que isso prejudicasse o controle da inflação.

Vou explicar.

O Banco Central controla a taxa de juros básica da economia, a Selic. Quando a taxa básica de juros está mais alta, investir em títulos públicos se torna mais atraente, então quem quiser tomar empréstimos precisa pagar juros mais altos. Assim, a decisão sobre a taxa de juros do Banco Central afeta o custo do crédito em toda a economia.

O Banco Central mexe no custo do crédito para influenciar as decisões de consumo e investimento. Se o crédito fica mais caro, há menos incentivos para investir e comprar a prazo. A taxa de juros mais alta tende, portanto, a afetar negativamente o consumo e o investimento.

Se as pessoas e empresas querem comprar menos, há menos demanda na economia. Assim, as empresas precisam vender os produtos a preços mais baixos. Além disso, as empresas vão acabar vendendo menos, o que leva a um menor nível de produção na economia.

Assim, a alta da taxa de juros pelo Banco Central tende a reduzir o produto da economia e os preços. Juros mais elevados ajudam a segurar a inflação, mas prejudicam o desempenho da economia.

O Banco Central manobra a taxa básica de juros para manter a inflação no nível desejado. Se o Banco Central deixa os juros em um nível mais baixo que deveria, sobe a inflação.

Esse efeito foi testado recentemente. No primeiro mandato de Dilma, o governo promoveu uma grande queda na taxa Selic para estimular a economia. Era a “Nova Matriz Macroeconômica”, apresentada na época pelo Ministro Mantega como uma grande inovação na política macroeconômica brasileira.

Como esperado, a inflação subiu. Para que a inflação oficial não refletisse esse aumento, o governo segurou o aumento dos preços administrados (os que o próprio governo controla). Uma espécie de “pedalada monetária”. Parte da inflação de 2015 reflete essa inflação escondida em anos anteriores.

Em suma, o BC não pode deixar os juros abaixo de um certo nível sem comprometer o controle da inflação.

Então, a pergunta importante é: por que os juros têm que ser tão altos no Brasil para que a inflação não aumente?

O BNDES é parte da resposta.

O BNDES fornece crédito a taxas muito inferiores à Selic para os mais diversos fins, por exemplo: nos últimos dez anos, o BNDES financiou diversos investimentos para construir ou renovar estaleiros, estimulando a indústria naval com juros baixos; há poucos anos, financiava a compra de caminhões a juros nominais de 3% ao ano (muito menos que a inflação); etc.

A expansão de crédito pelo BNDES tem efeitos sobre o investimento, mas também sobre a inflação, assim como qualquer outra expansão de crédito.

Por vezes, a discussão sobre política econômica parece supor que a taxa Selic (a que o BC escolha) afeta a inflação e o investimento, mas que o crédito do BNDES só afeta o investimento, não tem impacto sobre a inflação. Essa distinção não faz sentido algum!

Se o BNDES expande o crédito, o BC precisa induzir uma contração no crédito na economia (subir os juros) para que a inflação fique no patamar desejado. Se o BNDES contrai o crédito, o BC pode induzir uma expansão no crédito (baixar os juros), sem que isso afete o total de crédito na economia e, portanto, sem que isso afete o controle da inflação.

Dizendo de outra maneira, ao financiar a construção de navios, o BNDES está estimulando a demanda por bens na economia. Para que a demanda fique no patamar que não leva ao aumento da inflação, o BC precisa compensar esse estímulo. Assim, é preciso uma taxa de juros maior para desestimular o investimento e o consumo.

Se os investimentos financiados BNDES a juros subsidiados não existissem, poderíamos ter mais crédito para a economia a taxas de mercado. Isso significa que teríamos juros mais baixos.

Temos no Brasil mais de uma taxa básica de juros. Nos últimos anos, a TJLP anda abaixo da inflação e o BNDES tem expandido muito o crédito, sem se preocupar com a inflação. Sobra ao BC a tarefa de contrair o crédito para compensar o efeito das operações do BNDES.

Lê-se nos jornais que esse ano, o BNDES está emprestando menos dinheiro esse no ano passado. É verdade, mas continua emprestando muito e o estoque de crédito do BNDES continua altíssimo, bem mais que 20% do estoque de crédito no Brasil.

Fala-se que o BNDES custa muito aos cofres públicos porque empresta a taxas de juros muito menores que as que remuneram a dívida do próprio governo. É verdade e esse custo é muito alto. Mas o problema não para por aí.


O BNDES também causa um aumento na taxa de juros paga na dívida pública — e na taxa de juros paga por pessoas e empresas que não tem acesso ao crédito subsidiado.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Dominância Fiscal (Bernardo Guimarães)

Alguns economistas têm alertado que uma das possíveis consequências do desequilíbrio nas contas públicas é o aumento da inflação. O que uma coisa tem a ver com a outra?

A inflação é, entre outras coisas, um imposto sobre o dinheiro que portamos.

Uma alta nos preços de 10% significa que a nota de R$ 10 perde parte do seu valor, pois essa nota só compra agora o que antes custava pouco mais de R$ 9.

Para onde vai esse R$ 1?

Quando emitiu essa nota, o Banco Central a trocou por algo que valia R$ 10.

Digamos que essa nota circulou na economia e, depois de uma inflação de 10%, voltou para o Banco Central, trocada por títulos públicos. Essa nota só comprou o que antes valia R$ 9.

Assim, a perda de valor do dinheiro causada pela inflação gerou uma transferência no valor de R$ 1, de quem portou a nota de R$ 10 para o Banco Central. A inflação funcionou como um imposto sobre o porte de dinheiro.

A base da arrecadação do imposto inflacionário é a quantidade de moeda que circula na economia. A alíquota do imposto é a inflação.

Se o governo não arrecada o suficiente, a inflação pode ser o imposto que fecha a conta? Quanto esse imposto é capaz de arrecadar?

A quantidade de moeda na economia (a chamada base monetária) é hoje cerca de R$ 250 bilhões, cerca de 4% do PIB brasileiro.

Uma inflação de 0,5% por mês (próxima da dos anos passados) resulta em uma “arrecadação” do imposto inflacionário de cerca de 0,25% do PIB em um ano.

Uma inflação 60 vezes maior (1% ao dia) levaria a uma arrecadação 60 vezes maior (15% do PIB)?

Não, porque um imposto desestimula justamente o que gera a base da arrecadação.

Antes do Plano Real, a inflação era cerca de 1% ao dia.

Pessoas e empresas buscavam deixar quase todo o dinheiro aplicado, ficando com a menor quantidade de moeda possível.

Assim, a quantidade de moeda na economia girava em torno de 0,8% do PIB. O imposto inflacionário arrecadava cerca de 3% do PIB.

Com o Plano Real, a alíquota do imposto inflacionário (a inflação) caiu drasticamente. Ficar com dinheiro no bolso se tornou menos custoso. Para empresas, não valia mais a pena incorrer em custos altos para ficar com o caixa zerado no final do dia.

Logo após o Plano Real, a quantidade de moeda na economia quase triplicou. Aos poucos, pessoas e empresas foram se acostumando à nova situação e a quantidade de moeda na economia continuou aumentando.

Os dados mostram que uma inflação 60 vezes maior gerava uma arrecadação do imposto inflacionário apenas 12 vezes maior, porque a quantidade de moeda na economia era um quinto do que tem sido recentemente (tudo como proporção do PIB).

Conclusão: para uma arrecadação significativa de imposto inflacionário, é preciso uma inflação muito alta.


Essa seria uma solução muito ruim para o desequilíbrio fiscal. Podendo escolher, qualquer governo vai preferir o ajuste fiscal à inflação.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

GREVE

Fecho 40 dias e 40 noites de greve.

Só deus sabe o preço que paguei por essa decisão (deus e VISA).

Pior que foi em euros, nas ilhas Maurício, Rodrigues, Reunião e Seychelles.

Seja como for, agora retomo o trabalho.

Todo início de ano faço a mesma promessa solene, irrevogável, urgente: ao trabalho!

Mas reconsidero a tempo, antes que algo de muito ruim aconteça.

Dito isso, lanço essa charada: cavalos usam chapéu?

Depende, se for um cavalo muito formal...

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Samuel Pessoa

Dominância fiscal é a situação em que o Estado não consegue gerar receita, por meio de impostos ou contribuições, suficientes para financiar seus gastos. Nesse caso, é necessário imprimir papel. A receita da impressão do papel, chamada de senhoriagem, fecha a conta.

Em um mundo com um banco central independente, o mecanismo é um pouco diferente. O BC não pode imprimir papel e entregá-lo diretamente ao Tesouro para que pague suas contas.

Mas ocorre de forma análoga: o BC remunera a liquidez do sistema bancário a uma taxa muito mais baixa que a necessária para estabilizar a inflação (visto que a taxa necessária para estabilizar a inflação produziria crescimento explosivo da dívida pública). Dessa forma, o Tesouro consegue colocar títulos no mercado a taxas também baixinhas.

Os juros baixos têm a função de controlar o crescimento da dívida e, com ele, um importante componente do gasto público, o serviço da dívida. Ou seja, dominância fiscal é aquela situação em que não é possível controlar a inflação, pois o juro que a controla produz explosão na dívida pública.

Qualquer brasileiro mais velho sabe muito bem o que é dominância fiscal. Nós convivemos com ela desde 1950, aproximadamente, até 1998. A partir de 1999, com o forte ajuste fiscal e seguidos anos de elevados superavit primários do setor público, parecia que tínhamos passado a ser um lugar normal.

Os seis anos de vigência da desastrosa nova matriz econômica, de 2009 a 2014, nos levaram de volta ao passado.

Hoje temos uma dívida que cresce como bola de neve e uma presidente muito enfraquecida, que não terá capacidade de promover a elevação de carga tributária e/ou a redução de gastos públicos requeridas para nos distanciamos da dominância fiscal.

Possível saída temporária, defendida pela competente economista Monica de Bolle, é retornarmos aos anos de 1995 a 1998, quando seguramos nossas inconsistências fiscais no câmbio, com o protagonismo de um destemido presidente do BC, Gustavo Franco, que segurou nossa moeda com muita saliva, autoconfiança e muito juro!

O regime de câmbio fixo, ou alguma variação dele, pode ser um guia para manter a inflação em níveis civilizados até que os políticos consigam encaminhar soluções ao impasse fiscal e saiamos da armadilha da dominância fiscal?

Penso que não. Aqueles anos, de 1995 a 1998, foram um período de ganhos de termos de troca. Regime de câmbio fixo ou assemelhados funcionam muito mal em períodos de perda de termos de troca.

Adicionalmente, os fundamentos macroeconômicos eram diferentes. Os deficit primários de 1995 a 1998 foram, em percentagem do PIB, respectivamente zero, 0,1 e zero. Os deficit com os quais nos defrontaremos nos próximos anos serão por volta de 1% ou mais.

Adicionalmente a dívida pública, líquida das reservas internacionais, era bem menor, e parte dela era dolarizada. É ruim se o câmbio se desvaloriza, mas é ótimo se o câmbio não anda: os juros pagos em dívida dolarizada são bem menores do que os juros pagos na dívida em real. O repasse de subidas da taxa Selic, com vistas a defender a cotação da moeda, para o custo de rolagem da dívida, era menor. Mesmo assim, no ano de 1998, a dívida líquida saiu de 30% para mais de 50% do PIB.

Ou seja, parece-me que o enorme estoque de reservas não será suficiente para segurar a inflação no câmbio se não melhorarmos substancialmente a política fiscal. Inflação à vista.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN e dominância fiscal

Samuel Pessoa já abordou a questão da "dominância fiscal" com a competência de sempre, mas acredito que ainda há o que dizer sobre o assunto, embora a conclusão seja a mesma.

A expressão é algo esotérica, reconheço; refere-se, contudo, a um problema que encontramos no nosso dia-a-dia, não apenas aplicado a governos, mas também a famílias ou empresas, a saber, a incapacidade de pagar suas dívidas.

Para ilustrar o tema, peço ao leitor que imagine um mundo muito simples, em que pessoas, empresas ou governos vivem por apenas dois períodos: "hoje" e "amanhã".

Imagine também um governo que "hoje" arrecada $ 100, mas gasta $ 110 e, portanto, se endivida em $ 10, prometendo pagar este valor de volta "amanhã", acrescido de juros de 10%. No caso, isso significa que "amanhã" a diferença entre o que o governo arrecada e o que gasta tem que somar $ 11; $ 10 para pagar de volta o principal e $ 1 a título de juros.

Para simplificar a exposição, vamos supor também que "hoje" já sabemos se "amanhã" o governo conseguirá (ou não) economizar os $ 11 necessários para pagar sua dívida. Caso se saiba que o governo tem essa capacidade, a vida segue.

O caso interessante, porém, é o oposto, quando sabemos que isso não será possível –por exemplo, que o governo só conseguirá guardar $ 5,50 (metade do necessário). Isso significa que, dada a taxa de juros de 10%, a dívida, inicialmente de $ 10, só pode valer $ 5, pois apenas com uma dívida deste valor e juros de $ 0,50 (10% de $ 5) o governo seria capaz de servi-la. Isso é, nas condições acima, o valor da dívida teria que cair à metade.

Há duas formas de fazê-lo: ou cortamos seu valor de face à metade (calote, em bom português), ou todos os preços desta economia dobram para fazer com que a dívida, que inicialmente poderia ser trocada por uma cesta de produtos no valor de $ 10, agora só possa ser trocada por uma cesta de produtos que vale $ 5.

Em outras palavras, sob "dominância fiscal", a inflação (o calote que não ousa dizer seu nome) fará o serviço que o governo não consegue fazer.

Notem que, em momento algum, menciona-se o banco central e suas estratégias para tentar controlar a inflação. O motivo é simples: nas circunstâncias acima, a autoridade monetária não tem instrumentos para contê-la. Pode subir a taxa de juros, fixar a taxa de câmbio, ou congelar a oferta de moeda.

Qualquer uma dessas abordagens esbarra numa restrição inexorável: o governo não tem como pagar sua dívida e, portanto, o valor dela terá que cair.

Obviamente, no mundo real nem o tempo se divide em "hoje" e "amanhã", nem temos como saber se, daqui a alguns anos, as condições mudarão o suficiente para fazer com que as contas de um determinado governo, agora deficitárias, se transformem em superavitárias.

É muito mais difícil, portanto, determinarmos se, na prática, o Brasil já vive uma situação de dominância fiscal, embora os riscos sejam crescentes.

Isso dito, uma coisa é clara: se não houver uma sinalização consistente do mundo político acerca de uma melhora das contas públicas num horizonte razoável, sem se prender apenas ao orçamento de 2016, a inflação haverá de subir.

O conflito fiscal não mais se resolverá de forma civilizada, pelo parlamento, mas na forma bruta da inflação descontrolada.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Rock indiano

Frescurinha com o rock francês? (alguns sustentam que não passaria de um grande mal-entendido).

Experimente o rock indiano. Jesus Cristo!

Há 15 dias ouço rock indiano, aqui nas ilhas Maurício e, sabem, não posso dizer que estou indo bem. Você entra no carro, barco, bar, casa, praia e lá está. Me dá ganas de sair por aí injuriando todos os deuses existentes, públicos ou secretos.

E vocês acham que só há um gênero dessa música?

Bom, eles têm o progressivo, o metaleiro e até o rock-balada.

Agora, o que vocês diriam do rap indiano? Me pediriam para, bondosamente, não cantar?

Well...

                                        Rodrigues, 15/09/2015.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Zé Dirceu


Não vamos estabelecer uma meta para o tempo de prisão do Zé Dirceu e, quando atingirmos essa meta, a gente dobra a meta! (meta aberta de regime fechado).

Hoje fui acordado pela notícia da prisão do Dirceu guerreiro do povo brasileiro.

Não me conformo. Um homem tão bom - guerreiro do povo brasileiro - ficar pra lá e pra cá viajando em cima de uma pica preta... Perdão, mas esse é o nome oficial do jato preto da PF.

Certa vez, por acaso, ele pousou em Porto Velho e, por descuido, decolou com metade do tribunal de justiça e da assembleia legislativa a bordo... Um grande descuido.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Santa Marta

Casa Elemento é um hostel tão remoto que o mesmo Pablo Escobar teria dificuldade em me encontrar. Uma hora de jipe desde Santa Marta, uma hora no lombo de uma moto montanha acima.

Quando cheguei notei quatro coisas: 1. Que uma horda viking tinha baixado diretamente da Noruega, ou Islândia, ou mesmo Groenlândia; 2. Que essa bugrada resolvera combinar biquíni com botas até os joelhos. 3. Que o hostel se baseia em barracas e redes de dormir; 4. Que eu tinha entrado pelo cano.

Fui a uma cachoeira montanha abaixo. Subi no lombo de outra moto, ainda mais xucra. Na volta, a bermuda Mizuno, sintética, sofreu falha catastrófica, da forma mais constrangedora possível, e não havia substituta - calça, bermuda, nada.

Sem ligar pra essas sem-graceiras, aproveitei a piscina, propriedade dos ditos povos nórdicos. Sobreveio o almoço.

O barman combinava chapéu irlandês com óculos estrelados e coreografia. Apelidado "o doutrinador", não me inteirei dessa ortodoxia. Um americano, que também trabalha no hostel, empreendia bombas cada vez maiores na piscina, com a esguia sueca por desafiante e o bar todo por alvo.

Não conheci o cozinheiro. De bom grado o teria surrado pelo desperdício de tão bons ingredientes.

No hostel as pessoas costumam tardear sobre a rede, essa enorme hammock para doze pessoas (e um gato) estendida sobre o abismo. Lá embaixo, Minca. Mais ao longe, Santa Marta, e o Caribe em sprawl. 2015 se aproximava em linha reta, com seus negócios polarizados.

Iniciada a noite interveio a febre. Os mosquitos, discretos, desencadeiam reação alérgica que os guias esqueceram de mencionar, e os vikings sabem, a julgar pelas botas - alcancei a origem da moda.

Em volta da fogueirinha entabulei conversas com norueguesas, suecas e dinamarquesas. Tinha umas alemãs, e até neo-zelandesas, sem que o foco deslocasse da gente viking. "A invasão estava a caminho? Haveria clemência?", quis saber.

Quando o ano novo chegou a febre tinha cedido e a ceia apresentou-se quase tolerável. Quase agradeci ao chef.

Todos dançavam à beira da piscina, com o entusiasmo próprio à idade e o fervor de certas ervas aromáticas.

O que me lembra a subida a Wayna Picchu.

- Vamonos, lento! - disse a loira vertiginosa.
- Las noruegas son muy rápidas - desculpou-se o guia local, resfolegando, incapaz de acompanhar o ritmo das moças.
- Nisso de noruegas você tem razão - acrescentei, para reconfortá-lo.

Nos estertores da febre ocorreu-me a solução do problema da bermuda, e um simples casaco amarrado à cintura restituiu a decência e a tranquilidade. Qualquer idiota teria atinado com a resposta imediatamente, mas eu precisei de horas elaborando, na pura febre.

Quando saí, no dia primeiro, abruptamente a média de idade dos hóspedes voltou aos 17 anos.

Colômbia

Cheguei na madrugada a San Andrés. Rolava uma festa na cobertura do hostel, e nenhuma pessoa de bem se atreveria a dormir.

Dormi.

Na manhã, barco até Cayo Bolívar. Quarenta minutos de solavancos e caldos no barquinho exíguo e rápido. Ilha bonita, mas sem muita vida marinha.

Antecipei minha ida a Providência, ilha mais autêntica, a vinte minutos de avião, com uma barreira de corais realmente bela.

Providência é uma cadeia montanhosa em selva luxuriante. Tudo está na costa, com uma carretera que medeia os negócios entre a montanha e o mar.

Na ilha anexa de Santa Catalina, acessível por uma ponte flutuante, fica uma comunidade Arrozal, descendentes dos escravos que aqui aportaram séculos atrás.

Ali comi o melhor arroz com feijão fora da interminável fronteira brasileira. E um peixe fresco, com canja de entrada. No fogão de lenha. Precisa dizer que o suco, caseiro, rematava o carinho? Tudo por 15 reais.

Na volta a San Andrés, o La Regata serviu um atum de outro mundo. Selado no azeite, crocante, em pimentas. Eu já tinha comido atuns impensáveis - na Grécia e em Rarotonga - e, portanto, sabia que a magia não tinha como se repetir.

Bem, eu estava errado. Abalado, exigi sinfonia de sabores de sobremesa, e lembro que trouxeram torta de coco, musse e um doce que não saberia fazer justiça.

Sim a limonada. Sabem, costumamos pensar nelas em termos de "aí, que azeda" ou "Deus do céu, adoçaram impiedosamente".

Pois eu vos digo: nada no mundo se compara à limonada com coco do Regata. Tentei outra, batida em neve e coco no Miss Célia. Muito boa, mas sem comparação. A limonada do Regata nos absolve das incertezas e agruras de aviões, barcos, ônibus, táxis, recepções de hotéis e passeios cheios de turistas sem noção.

E tem o chincharrón, carne de porco profundamente frita, com a pururuca. É o mais típico da Colômbia, creio.

Bogotá.

Centro histórico bem América Latina, com palácios e sobretudo igrejas intermináveis. Subindo rumo à montanha a gente entra por umas ruelas que lembram cidadezinhas do interior.

Visitei dois supermuseus. No Museu del Oro tudo é de ouro e lindo. O Nacional tem vários Boteros, cujo museu estava fechado. Eles aproveitaram que iam fechar no natal e véspera para também fechar na antevéspera, zoando a agenda dos turistas.

Andrés Carne de Res.

Massive! Um bar-restaurante sensacional. Até o juiz Sérgio Moro cairia na esbórnia ali. Uma bandinha se aproxima de sua mesa e toca uma marchinha. Clarineta, bumbo e outro. E te passam a faixa presidencial.

A escada que leva a não sei quantos andares revela um forno em que lavram labaredas ocasionais.

Andrés: a festa é obrigatória; o chope, impecável, mas a carne estava dura.

Taxista.

Contrariando o bom senso, não esperei o taxi do hotel e peguei um na rua. Pra quê!

Primeiro, faltava metade do braço ao taxista. Depois, notei que ele não sabia onde ficava o museu do Oro. Ligou para alguém, que lhe passou as coordenadas. Para nada. Ficamos rodando horas. Até eu descobri antes dele onde ficava.

Pedi pra descer. Paguei o que tinha no bolso, 10 reais, fração do que ele esperava.

Então é Natal.

"Pessoas não devem praticar o bem só no Natal". Sério? E quem não pratica o bem NEM no Natal, hein?

Saí de Bogotá após o café e ganhamos as montanhas até Leyva, sorvendo o frescor da cordilheira, que se dava em pêssegos.

Leyva é um primor colonial e, no Mercado Municipal, comi barbacoa de cordeiro, junto com cerveja artesanal. Insano. O restaurante mais bonito que já vi está aqui e fica numa construção histórica.

Hospedei-me numa finca colonial debruçada sobre a cidade. Nestas montanhas nasceu a Colômbia, se os livros de história não me enganam.

Amanhã, San Gil.

No Renacer se acorda entre o canto dos pássaros. Lá embaixo o sol vem construindo uma cidade aos poucos, sem alarde. A propriedade, uma fazendinha colonial, é toda charme e acolhimento.

Daqui a pouco saio para San Gil, para aventuras.